Teorema dos Pingos de Sol

Parte I

(Depois de uma chuva de raios em Ponta Delgada)

Não são gotas: são farpas de luz líquida
espetadas na pele do mar.
O sol desfez-se em cacos de âmbar,
e agora navegam
— náufragos de um incêndio primordial —
sobre as costas das ondas.

Eugénio, tu dirias que são sementes de mel
a germinar no sal.
Eu digo: são os restos do primeiro verbo,
o que Adão não ousou pronunciar
antes de saber que a luz
também é uma ferida que escorre.

Fernando, mentiste:
o sol não é estático.
Ele sangra em silêncio sobre os telhados,
enche os regatos de ouro instável,
e as pombas bebem dele
até se tornarem relâmpagos com asas.

Sophia, nas tuas praias de granito,
os pingos colam-se às rochas como lírios devorados.
Cada um guarda um mapa do caos:
redemoinhos de fogo em miniatura,
universos que cabem na concha da mão
antes de se desfazerem em névoa.

Al Berto, roubei-te o crepúsculo em fuga
para pintar estes versos.
Os pingos são cavalos alucinados
galopando sobre vidro fumado,
e eu, espectro entre espectros,
aprendo a ser sombra de chama.

Clarice, escrevo-te da raiz da manhã:
os pingos são letras de um alfabeto solar
cravadas na casca do mundo.
Talvez a salvação esteja nisto:
em decifrar a luz como quem desata
os nós cegos da existência.

Drummond, a pedra no caminho
engoliu um pingo de sol.
Agora lateja como um coração enterrado,
e eu, sem pá para a desenterrar,
escrevo-lhe epitáfios com os dedos
na poeira das horas.

Florbela, nos teus sonetos noturnos
os pingos são lágrimas de fénix.
Eu coleto-as em frascos de ânfora quebrada
para regar os catos do deserto
onde plantei, um dia,
as sílabas do teu nome.

Miguel, nas encostas onde o silêncio é dono,
os pingos caem como dentes de alho roxo.
A terra engole-os com fome de loba,
e eu, aprendiz de geólogo do efémero,
mapeio cicatrizes de claridade
no corpo do granito.

Herberto, tu saberias que os pingos
não são mais que corpos incendiados,
estilhaços de deuses que caem
numa dança cósmica sem nome.
Tocas-lhes, e dissolvem-se
num rumor de constelações extintas.

Cecília, no teu canto de vento e silêncio,
os pingos são fios de orvalho suspensos no tempo.
Se os olharmos de perto,
vemos neles o reflexo de um pássaro antigo
ou a memória líquida do céu
antes da primeira manhã do mundo.

Neruda, nas tuas odes elementares,
cada pingo seria uma semente de fogo,
germinando no ventre verde do mundo.
E eu, seguindo os teus passos,
aprenderia a cantar a epifania da luz
no mais ínfimo grão de areia.

Borges, nas tuas ficções labirínticas,
os pingos seriam cifras de um idioma infinito,
contendo todas as palavras, todos os poemas
que foram e serão escritos.
E eu, peregrino dos teus espelhos,
buscaria a chave desse mistério
na geometria fractal das gotas.

E ao fim, resta este espanto:
um pingo de sol preso entre os dentes
relíquia, veneno, semente
enquanto o mar, esse grande escriba do tempo,
garimpa na areia o verso final, o último,
o que nunca ousei escrever.

Mas que hoje, enfim, se fez pura luz
no âmbar luminoso desta página.

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