O Dia em Que o Mundo Desligou

1. O Último Clique

Um cursor piscou, suspenso no ar,
como a última nota de um piano a quebrar.
Redes desvaneceram-se em pó de estrelas,
e o eco de um enter sumiu nas areias.
Ninguém ouviu o servidor morrer.
O ecrã escureceu sem se despedir,
um coração digital a deixar de bater.

2. Rotina Silenciosa

As manhãs acordaram sem notificações,
o despertar já não tem algoritmos,
são pássaros, agora, os mensageiros
que riscam o céu com seus voos e giros.
Relógios de sol marcam o compasso,
e os dedos, órfãos de teclas,
desenham nuvens no vidro do espaço.

3. Ausência do Ecrã

Espelhos líquidos secaram de vez:
não há mais rostos filtrados por apps,
só pores-do-sol a sangrar sobre a pele,
e olhares que se cruzam, completos e inteiros,
como cartas abertas na mesa do café.
Até as crianças sabem: o arco-íris
não se imprime em nenhum download de papel.

4. Memórias e Conexões Perdidas

Fotografias viraram mitologia —
quem prova que o feed existiu?
Nas paredes, marcas de quadros digitais
são fósseis de uma era subtil.
E as mensagens não lidas? Vagam
como fantasmas em cabos submarinos,
sussurrando em línguas de binários frios.

5. Primeiro Contacto

Foi no jardim de dálias que ele estendeu a mão,
sem emoji, sem buffer, sem delay.
O toque foi lento, hesitante, quase uma prece,
um protocolo antigo a restabelecer.
Descobrimos, então, que a rede maior
nunca precisou de Wi-Fi para acontecer:
são raízes, não fios, que ligam a flor.

Epílogo: Reinício

A noite chegou sem scroll infinito,
e as constelações, livres de píxeis,
recontaram suas lendas originais.
No silêncio, um riso nasceu, sem filtro —
o primeiro link de uma humanidade
que, ao fim do sinal, reencontrou a idade
em que conexão era só… realidade.

março 2025
©Júlio Miranda

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