
Metapoema em Dois Actos
I. O Poema que Não Sabia que o Era
Era só uma lista de compras:
pão, leite,
silêncios não perecíveis
e uma lua mordida pela janela.
Ninguém lhe disse que era poesia.
As palavras, tímidas,
escondiam-se entre recibos e lembretes,
sem saber que carregavam
o peso do céu nas sílabas.
Até que um dia,
alguém leu em voz alta
e o verso “silêncios não perecíveis”
caiu no chão,
quebrando-se em eco.
Foi então que o poema olhou pra si:
“Ah, então era disso
que eu tinha fome…”
E, sem fazer barulho,
refez-se de luz.
II. O Poema que Sabia que o Era
Antes mesmo do ponto final,
ele já se via no papel:
uma criatura de tinta e espanto,
respirando entre as margens.
Não esperou pela mão do poeta —
arrancou vírgulas do ar,
vestiu-se de metáforas roubadas
e declarou-se obra-prima
antes do primeiro verso.
O autor, perplexo, observava:
“Como assim te rebelas?
Eu sou quem te inventa!”
Mas o poema, em itálico, sussurrava:
“Erraste: eu me invento
enquanto você me lê.”
E assim, entre riscos e rasuras,
ambos descobriram
que a melhor poesia
é aquela que escreve o escritor
enquanto é escrita.
✨ Nota do autor (ou seria do poema?):
Entre o “não saber” e o “saber demais”, há um lugar onde os versos não pedem licença para existir. Foi lá que tudo começou — num erro com fome de palavras.
março 2025
© Julio Miranda

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