Entra sem bater no silêncio

Entra sem bater.
A porta é só um véu de ar
onde a luz desfia seus dedos.
O chão aceita pés descalços
— até as sombras já aprenderam
a não ranger.

Traz contigo o que couber
no colo do vento:
um grão de pó que foi estrela,
o peso de uma nuvem parida,
o mapa de um rio
que desistiu de ser caminho.

Não perguntes pelos relógios.
Eles dormem no fundo do poço,
engolidos por suas próprias correntes.
Aqui o tempo é um animal manso
que bebe orvalho
e deixa pegadas de musgo.

Repara nas paredes:
são feitas de esquecimento compactado.
Tocá-las é sentir
o relevo das vozes que ali secaram
— relevo de asa de borboleta
presa em âmbar.

Senta-te onde o vazio
tecer uma cadeira de névoa.
Não te assustes se a ausência
te oferecer chá de horizonte
numa chávena sem fundo.
Bebe devagar.
Aqui até a sede é leve.

E quando ouvires
o rumor do teu próprio sangue,
não o interpretes.
É apenas o rio subterrâneo
recontando lendas
ao ouvido da terra.

Fica quanto precisares.
O silêncio é casa sem dono.
Só pede que, ao saíres,
não feches a porta.
Deixa-o respirar
o cheiro da tua passagem
— flor breve de granito. (Porque um dia, quem sabe,
o silêncio baterá no teu peito
com os nós dos dedos leves,
e dirá, sem palavras:
“Entra.
Aqui também há uma sala
com tua forma exata
esculpida no ar.”
)

maio 2025
© Julio Miranda

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