ARQUEOLOGIA DO NUNCA-ACONTECIDO

Escavo teus gestos em estratos de mármore mole —
cada camada, um véu que desfiz
para vestir a estátua que me inventas.
Nesta escavação de espelhos,
encontro moedas cunhadas em se
e mapas do teu corpo
escritos em caligrafia de nevoeiro.

Guardas-te no sótão das horas mortas,
entre caixas de quase e garrafas
de vinho que nunca abrimos.
Desenrolo os pergaminhos do teu riso
e leio, em letras de sal,
o tratado do amor que não assinamos:
toda palavra é uma ferida
que sangra futuro pretérito.

Sob o microscópio, teus ossos
são feitos de perguntas não respondidas.
Coleciono os cacos do teu nome
e remonto o vaso que quebraste
antes mesmo de existir.
Arqueólogo do impossível,
aprendi a beber sombras
e a chamar-lhes água.

No museu das minhas mentiras,
ergues-te em vitrine iluminada:
Estatueta de argila e esquecimento,
século XX — fabricada em sonho,
relicário de um deus sem altar.

E eu, fiel ao culto do nunca-acontecido,
acendo velas ao fantasma
que me desenhaste no ar.

maio 2025
© Julio Miranda

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