
Teorema dos Pingos de Sol
Parte II
(Após o temporal, o sol rachou a noite em espelhos)
Não são lágrimas: são escudos de fogo líquido,
pétalas de fénix a sangrar no asfalto.
O céu, esse ourives de horas vazias,
forjou-os na bigorna das nuvens.
E caem agora — estilhaços de um relâmpago que se nega a morrer —
sobre os ombros da madrugada.
António Gedeão, nos teus átomos de verso,
os pingos são equações de luz não resolvidas:
Hidrogénio + saudade = raiz de aurora.
Ensina-me a pesá-los em balanças de névoa,
a dissecar seus núcleos de mistério
como quem desmonta um relógio divino.
Lídia Jorge, nas tuas veredas de memória,
os pingos são alfaias quebradas do Império.
Cada um guarda o peso de um navio naufragado,
o eco de uma língua que o vento apagou.
Coleciono-os em salinas abandonadas,
onde o sal ainda sabe a sangue e a sargaço.
Manuel Alegre, nos teus rios de exílio,
os pingos são balas de luz engasgadas no céu.
Disparas cada uma contra o silêncio dos muros,
e elas florescem em papoilas nas fendas do granito.
Até a sombra, aqui, tem insónia e bandeira —
e a liberdade é um rio que seca na palma da mão.
Manuel Bandeira, no teu quotidiano de cinza,
os pingos são restos de café no fundo da chávena.
Vejo-os dançar tangos descalços sobre a mesa,
enquanto a tarde, essa costureira oblíqua,
remenda o casaco roto do tempo
com fios de luz precária.
Teixeira de Pascoaes, na tua névoa-saudade,
os pingos são almas de musgo penduradas nos carvalhos.
Cada um sussurra o nome de um deus esquecido,
e eu, peregrino da bruma,
bebo seus ecos para apagar a sede
dessa sede infinita que me define.
Mário Cesariny, nos teus sonhos de faca,
os pingos são répteis de acetato a devorar o azul.
Rasgas o céu com tesouras de alucinação,
e a luz escorre em fitas de delírio,
enquanto os pássaros, agora cubistas,
desmontam-se em triângulos de asa e espanto.
Ruy Belo, nas tuas esquinas de ironia,
os pingos são piadas que Deus esqueceu no poema.
Caem como vírgulas trocadas, como pontos finais
que teimam em abrir parêntesis de absurdo.
E eu, burocrata do caos,
arquivo-os em pastas de água e esquecimento.
Vitorino Nemésio, no teu mar de Açores,
os pingos são baleias de vidro a mergulhar no basalto.
Cada um canta uma ladainha de búzios e tempestades,
e o horizonte, esse velho capitão bêbado,
desenha mapas onde a luz é a única ilha
que não desaparece quando a noite avança.
Machado de Assis, nos teus salões de espelho,
os pingos são epigramas de ódio dourado.
Observas cada um com luneta de dândi,
enquanto as damas, borboletas de luto,
bebem seu brilho afiado
para matar a sede das traições perfeitas.
Vergílio Ferreira, nos teus abismos de granito,
os pingos são lápides de ar suspenso no precipício.
Escreves cada um como quem esculpe um adeus
na carne viva do silêncio.
E eu, aprendiz de vertigem,
equilibro-me no fio dessas águas que caem
sem nunca tocar o fundo.
E ao fim, resta este silêncio:
os pingos secaram, deixando cicatrizes de fulgor
na pele do mundo.
O mar, eterno copista, repete o seu mantra de espuma,
enquanto eu, sentado na praia dos impossíveis,
aprendo a ler as marés
pelas feridas que a luz abriu em meus ossos.
Mas um verso basta
para que o sol renasça em cada letra.
fevereiro 2025
©Júlio Miranda
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