
O Códice do Sorriso Inacabado
(Para Leonardo, que aprisionou o vento nos lábios de Lisa)
Não é curva: é um rio de talvez,
uma fresta entre o véu e o abismo.
Leonardo misturou sangue de aurora
com pó de pirita nos cálices do olhar —
e assim nasceste:
sismógrafo de todos os segredos,
arqueologia do quase.
Sorris de sfumato, teu mapa é um labirinto
de veias azuis sob a pele do Renascimento.
Cada canto é fuga, cada fuga é anzol:
nos pescamos em ti
nossos próprios enigmas suspensos,
como fios de teia entre dois séculos.
Na tua boca mora o que a luz esqueceu:
florentinas conspirações,
equações que o tempo apagou a carvão,
o primeiro nome que Eva sussurrou
antes de saber que nudez
também é uma língua.
Pintor-alfaiate, costuraste
o invisível com agulhas de melancolia:
esse teu sorriso tem costuras de névoa,
remendos de horizonte engolido,
e nós — espectadores famintos de abismo —
mastigamos a trama
sem nunca alcançar o avesso.
Ah, Mona, és a primeira astronauta:
viajas num barco de tela para lugar nenhum,
levando nas dobras do vestido
as coordenadas do humano.
Tua boca é cápsula do tempo
onde até os deuses deixaram
suas impressões digitais em brasa.
Cientista do intangível, Leonardo sabia:
o sorriso perfeito é aquele que se nega,
que se esconde sob cinquenta camadas
de verniz e insónia.
Por isso te desenhou como se escreve um teorema —
com a precisão do caos
e a geometria do acaso.
E quando a noite cai sobre o Louvre,
tu respiras.
As moléculas de óleo acordam,
e naquele instante — só meu, só teu —
revelas o que jamais dirás:
que sorrir é desenhar uma ponte
entre a pergunta e o silêncio,
entre a tinta e o infinito.
Mas o teu segredo maior
é ser sorriso de quem nunca existiu.
fevereiro 2025
©Júlio Miranda
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