Escrita no Cosmos

Havia um relógio na casa da minha infância,
um pêndulo de latão com um mostrador de lua
onde as horas se acumulavam como pó.
Costumava ficar acordado a ouvi-lo parcelar o silêncio,
a pensar na matemática implacável dos seus dentes e rodas.

Mesmo então, lutávamos contra o que nos escorria das mãos
(amoras esmagadas, rostos de amigos mudando com as estações) –
mas o tempo, percebi, não é inimigo. É a roda dentada
onde dançamos, descalços, enquanto tecemos horas em fogueiras efémeras:
é o tear onde Deus joga sílabas, tecendo
o mundo a partir do caos primordial da língua.

ARA, o verbo ancestral que ara a escuridão,
sulcando luz no ventre do não-tempo. ARA,
a palavra-semente plantada no osso e no respirar,
ecoando na cadência de marés e migrações.

Montanhas brotam de consoantes ásperas,
vales desdobram-se como pergaminhos –
até a paisagem é uma espécie de livro,
escrito e reescrito pelo impulso nómada da água.

E nós, criaturas de barro e fôlego,
carregamos mapas em línguas de exílio,
barcos navegando pelo próprio naufrágio
em busca de costas com outros nomes.

Mas os nomes também são passageiros,
castelos de areia construídos à beira
do inominável. Cada palavra acabada
transporta a semente da sua indizibilidade –
para falar é esculpir silêncio,
para cantar uma cicatriz.

No final, o que resta? Não monumentos,
mas momentos: vislumbres do sublime
teimosamente tomados, modestas eternidades
renegadas a partir do fluxo implacável.

Fragmentos de coral e osso, conchas
segurando o seu zumbido de distância –
cada poema um fóssil frágil,
testemunho do trabalho lento de ser.

Por isso escrevemos, não para a posteridade,
mas para a poeira: para devolver
cada grão emprestado ao vento sem nome,
cada sílaba roubada à maré que apaga.

Pois somos, na melhor das hipóteses, apenas tempo –
um intervalo de luz ofegante
entre duas escuridões sem fôlego.

Deixar uma marca, então,
nem que seja só um rasto de migalhas
para guiar o próximo sonhador desencaminhado
a casa para a surpresa –
esta é talvez a única imortalidade
em que podemos esperar.

fevereiro 2025
©Júlio Miranda

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