Numa aldeia parada no tempo, em que a farinha de trigo e de milho faziam girar mós de moinhos de vento, e os regatos abundantes movimentavam enormes rodas das azenhas, vivia um homem de nome Bartolomeu. Homem forte, com músculos vincados pela agricultura, alto, de olhar penetrante.

Como era habitual, às segundas e aos sábados, encontrava-se no mercado ao ar livre, na vila próxima da aldeia onde habitava. Não eram raras as vezes em que surgiam altercações e ânimos exaltados, por memórias de desvios de água das regas ou por causa de marcos dos terrenos ligeiramente deslocados, para plantar mais alguns grãos que ainda sobravam nas sacolas. Muitas vezes, todos se engalfinhavam, e até zurziam no calado Bartolomeu, com insultos imprevistos. Ele esboçava um sorriso e, de mansinho, esgueirava-se da turba gritante, onde voavam bacias, cabos de enxada e outros artefactos que hoje consideraríamos ovnis!

Mas Bartolomeu nem sempre tinha sido assim! Em jovem, era raro o dia em que chegava a casa sem arranhões ou nódoas negras. Nunca se ficava. Fossem mais pequenos ou bem maiores do que ele, os picanços, os gozos ou as bocas nunca ficavam sem resposta! O sangue fervilhava em segundos, e gritava até perder a voz, não deixando de arremeter contra quem quer que fosse. Se chegasse a vias de facto, os olhos toldavam-se de ira, dava e levava, sem nunca se queixar, pois dizia sempre no fim: “Quem vai à guerra dá e leva!”

Um dia foi à zona dos moinhos, pois os pais tinham mandado moer uns alqueires de milho, e a farinha já fazia falta. O moleiro não tinha tido tempo de fazer as entregas, que derreavam a mula usada para o transporte. Naquele dia, os afazeres eram muitos, e só à noite poderia fazer a entrega.

– Olá, tio António! Venho buscar a encomenda que já está a fazer falta! Você não se despacha, homem?!

O moleiro, que passava os dias em solidão e meditação, era conhecido pelas tiradas filosóficas, acima do senso comum. Fitou os olhos no rapaz e disse-lhe:

– Tu és um bom rapaz, trabalhador, ajudas os teus pais, mas tens muito que aprender.

Bartolomeu ficou desarmado. Esperava uma resposta ríspida e enfrentava uma frase daquelas!

– Eu conheço-te desde que nasceste – continuou o moleiro. – Sei como tu és. Se vais trocar palavras com quem ama a própria ignorância, acabarás tão estúpido como eles…

Fez-se silêncio. (Aquilo soou ao rapaz como um sermão do senhor reitor, na missa de domingo.)

– Deves ser sábio – continuou o moleiro – ao ponto de ficar em silêncio diante da estupidez de algumas pessoas!

Bartolomeu carregou pesados sacos de farinha nos ombros e saiu em silêncio. … Olha agora este! Ser sábio ao ponto de ficar em silêncio? O tio António já o habituara a tiradas filosóficas, mas esta ficara-lhe a moer os miolos com mais intensidade do que as mós do tio António moíam a farinha. Isso soa a cobardia, pensou. Mas andou uns dias a matutar naquela espécie de enigma que o tio António lhe lançara… E se ele tiver razão?

Numa manhã de sábado, no mercado, Bartolomeu teve a oportunidade de pôr em prática os ensinamentos do moleiro. Mal ia a entrar, o Manuel dos Porcos – alcunha herdada do avô, um grande criador de suínos – resolveu atirar-lhe uma boca:

– Hei, Bartolomeu, já pagaste as tuas dívidas ou continuas a dever a meio mundo?

O rapaz, já crescido, rangeu os dentes. Sentiu o sangue subir-lhe em efervescência dos pés à cabeça. Ele não devia um tostão a ninguém! Porquê aquela calúnia? Conhecia bem o Manuel, sempre mal-humorado e pronto a tirar qualquer um do seu juízo. Foi então que se lembrou das palavras do tio António. Sorriu e continuou o seu caminho, enquanto o Manuel dos Porcos ficou a olhar atónito: então o tiro foi de pólvora seca?!… Mas logo se virou para o lado para azucrinar outra pessoa. Bartolomeu experimentou uma leveza e uma tranquilidade por não se ter metido em confusões, e gostou do sentimento!

Os dias na aldeia seguiam o seu curso normal até que rumores estranhos começaram a circular sobre uma pequena casa de granito no extremo da povoação, mas abandonada. Os rumores e mexericos levantaram alvoroço entre os habitantes. Dizia-se que, à noite, ouviam-se arrastar de correntes e luzes de candeias deixando reflexos fugazes nas janelas. O Zé Sabichão era o que mais se atarefava em espalhar, de casa em casa, histórias de almas penadas e danças de bruxas com mortos. Disso sabia ele, assegurava! Tinha toda a certeza do que se passava naquela pequena casa à noite.

Bartolomeu, a princípio, não fez caso. Deixem-nos falar! Mas a situação tornava-se insustentável de dia para dia. Ao pôr do sol, as portas que ficavam sempre escancaradas durante o dia, mesmo que não estivesse ninguém em casa, começaram a fechar-se com trancas de madeira por dentro. Até chegaram a pedir ao senhor reitor para fazer uma novena para apaziguar as almas, mas ele, homem ponderado, percebeu o medo, mas não lhes fez a vontade.

Bartolomeu, que já não podia ouvir falar mais daquilo, disse:

– Eu vou lá ver o que se passa!

Endoideceu! Pensaram todos. Então ele, que se tornara um homem sensato e um pouco filosófico, como o tio António, ia-se meter numa situação complicada daquelas?

O Zé Sabichão não quis ficar para trás e, fazendo das tripas coração, disse:

– Eu vou contigo!

(Embora naquele momento estivesse pálido e com suores frios.)

Quando anoiteceu, pegaram nas candeias de azeite pequenas, com quatro superfícies de vidro para não se apagarem, e rumaram determinados em direção ao fim da aldeia. Bartolomeu, com passo vigoroso e firme, seguia em silêncio mais à frente, enquanto, mais atrás, o Zé não parava de gralhar teorias sobre teorias.

Chegados à casa, escancararam um portão de madeira desconjuntado, que dava para um jardim invadido por silvas, misturadas com ramos secos de roseiras, à volta das quais cresciam ervas desordenadas.

Zé Sabichão ficou-se pelo portão. As pernas tremiam-lhe, e a testa era invadida por grossas bátegas de suor.

Bartolomeu aproximou-se da casa. Encostou a cabeça a uma janela e levantou a candeia, na tentativa de lobrigar o interior. Os barulhos quase fizeram o Sabichão desfalecer.

Um pouco depois, Bartolomeu soltou uma gargalhada canora e dobrou-se a rir.

– Que foi? – perguntou o Zé, enquanto se aproximava e assomou pela janela.

No escuro, via-se um enorme gato, que se divertia puxando uns fios que atavam as tampas de umas panelas, que deviam ter-se desprendido das paredes.

– Então é isto?! – disse Bartolomeu, divertido.

Mas Sabichão não desarmou, argumentando que os gatos estão relacionados com almas do outro mundo, que possuem energias más, que são seres com espiritualidade, e…

Não parava!

Bartolomeu não disse nada. Limitou-se a sorrir e deixou de ouvir o Zé, pois já se tinha, sem o revelar, divertido imenso com as suas teorias.

Com o passar dos anos, a mudança em Bartolomeu tornava-se cada vez mais evidente. Pouco a pouco, Bartolomeu foi ganhando a certeza de que, sempre que se continha perante muitas tolices, poupava energia e evitava discussões inúteis. Com o passar do tempo, notou-se mais tranquilo, mais atento, com paz mental para se dedicar a assuntos de que gostava, como o estudo da astronomia, e também não deixava de ajudar os seus vizinhos nas hortas, tal como eles faziam com ele.

A aldeia notou a mudança naquele homem e começou a ouvi-lo como homem sábio, que não entrava em disputas fúteis nem gastava o fôlego a alimentar conflitos vazios. Ele compreendeu que a sua atitude impunha mais respeito do que se andasse a gritar aos quatro ventos as suas razões.

Um dia, Bartolomeu procurou o tio António. Homem já sem grandes forças, Bartolomeu encontrou-o sentado na soleira da pequena porta do seu moinho. A tarde ia caindo, e o frio fizera-o acender uma pequena fogueira à sua frente, para a qual estendia as mãos, aquecendo assim a alma. Os pinheiros em redor não se mexiam, como em reverência àquele homem. Pequenos ruídos, apenas do crepitar das chamas…

– Tio António, tomei as suas palavras como estrela polar, pela qual me guio, e tenho descoberto que a paz existe em não rebater todo e qualquer disparate – disse com gratidão.

O moleiro entreabriu um sorriso tímido, enquanto colocava mais lenha na fogueira.

– Então descobriste a luz, meu jovem homem! Responder à estupidez não te torna mais sábio; pelo contrário, só te torna igual ou pior. Fica em silêncio, ouve, observa, e só então decides se vale a pena gastar energia ou não.

A noite descera, e, no céu, à estrela polar vieram juntar-se as outras constelações.

A luz da fogueira iluminava palidamente os rostos dos dois homens. Bartolomeu sentiu-se feliz, sentado na pedra da soleira, ao lado do tio António. Não resistiu a soltar uma pequena gargalhada, lembrando-se das vezes em que comprara brigas fúteis.

Com o tempo, Bartolomeu tornou-se uma figura respeitada, a quem os aldeãos recorriam em busca de palavras de serenidade ou apenas para estar na sua companhia. Aquele antigo respondão e impaciente era agora o símbolo da calma, tendo aprendido a lição do tio António: ser sábio ao ficar em silêncio perante a estupidez de algumas pessoas.

A aldeia parece ter aprendido com ele, tornando-se mais pacífica, compreensiva e menos quezilenta por motivos que outrora geravam grandes discussões e até ameaças de morte no paroxismo do ódio. Muitos aprenderam que calar e seguir em frente não é covardia, mas sabedoria. A sabedoria de poupar a própria energia para investir naquilo que é nobre!

janeiro 2025
©Júlio Miranda

2 comentários a “Silêncio de Ouro”

  1. Avatar de Winer
    Winer

    E uma linda história

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