
I – Clara
Eu mal conseguia respirar com tanto pó no sótão. O ar estava carregado de partículas que dançavam nos feixes de luz que entravam pelas frestas da janela, como pequenos fantasmas de um passado adormecido. Cada passo que eu dava fazia o soalho ranger, como se a própria casa protestasse contra a invasão daquele espaço congelado no tempo. Tossi e praguejei baixinho quando bati com a cabeça numa viga inclinada, mas não deixei que nada disso me detivesse.
Havia algo naquele velho baú escondido sob uma manta desbotada que me atraía como um íman. Era mais que curiosidade — era quase uma intuição, como se alguma parte de mim já soubesse o que iria encontrar ali. Assim que abri a tampa, libertando uma pequena nuvem de poeira, senti o cheiro inconfundível de papel envelhecido e vi, por entre cartas amareladas, um caderno de capa dura, forrada a couro.
“É aqui que se escondem os segredos”, pensei, abraçando o diário contra o peito, sentindo o peso de décadas de silêncio.
A letra na primeira página tinha traços delicados, como se quem a escrevesse tivesse tempo e cuidado para formar cada curva das letras. “Amélia…”, li em voz baixa, testando o som daquele nome.
Não era a minha tia-avó – a mulher que me deixara a casa na herança. Devia ser alguém de outro ramo da família, perdido no tempo. As primeiras páginas falavam de trivialidades, mexericos familiares, pequenas descrições do quotidiano de uma jovem aristocrata do século XIX. Mas então… deparei-me com linhas estranhamente manchadas, quase impercetíveis, como se o tempo tivesse apagado algumas palavras.
Virei mais páginas. Ocorreu-me que, talvez, alguma reação química ou tinta especial pudesse ter apagado o texto. Sendo arquivista, aprendi que certos documentos antigos guardam segredos que só se revelam com luzes específicas.
Suspirei. Eu não era perita em manuscritos raros, mas conhecia alguém que podia ajudar: o Miguel. Um conhecido historiador cético que, apesar de fazer troça de histórias de “famílias com antepassados misteriosos”, adorava um bom desafio forense.
Voltei a descer as escadas do sótão, com o diário numa mão e o coração disparado no peito. Eu não tinha ideia do que estava prestes a descobrir, mas algo me dizia que aquele baú, e aquele diário, guardavam mais do que simples lembranças de uma vida aristocrática.

II – Clara e Miguel
— Tens a certeza de que é seguro? – perguntei, enquanto o Miguel ligava a pequena lanterna UV, com a mesma tranquilidade de quem acende a luz da casa.
— Clara, ultravioletas não queimam papel, descansa. E se o diário for mesmo autêntico e estiver escrito com alguma tinta incomum, deve reagir. – Ele sorriu, um misto de ceticismo e empolgação.
Estávamos na minha cozinha, à noite, para garantir o máximo de escuridão. A janela deixava entrar apenas um fio de luz da rua. Eu apaguei todas as lâmpadas, e ficámos em silêncio. Miguel direcionou o feixe arroxeado para a página que eu abria com cuidado.
No início, nada. Só os rabiscos de Amélia, parte legíveis, parte sumidas. Então, mais adiante, onde havia aquelas manchas apagadas… surgiu um brilho esverdeado, como se um espectro de tinta renascesse da página.
— Meu Deus… – sussurrei, sentindo a pulsação acelerar. Eu e Miguel trocámos um olhar incrédulo, tão espantados quanto crianças que descobrem um truque de magia.
— Consegues ler? – perguntou ele, inclinando-se mais.
Aproximei o rosto do diário, tentando decifrar a caligrafia. As palavras ressuscitadas pelo feixe de luz ultravioleta traziam o tom de um segredo terrível: “Prometo que tudo farei para proteger o que é meu. Mesmo que tenha de…”
A frase terminava bruscamente. Virei para a página seguinte, mas nada de novo aparecia. Um arrepio percorreu-me a espinha. A ideia de que a autora daquele diário pudesse ter feito algo extremo em nome do amor ou da honra da família começou a tomar forma na minha cabeça. Quem seria ela ao certo? E o que tanto ocultava?
Miguel, ainda sério, voltou a falar:
— Parece que tens pela frente uma investigação, Clara. Isto não é apenas tinta simpática. Se no final do século XIX descobriram algum método de escrever com pigmentos que reagem assim… é possível que existam outras passagens escondidas.
— E se ela estiver a falar de um crime? – larguei, sem pensar. — É possível que a minha família esteja envolvida em algo mais sinistro do que imaginei.
Ele ergueu a sobrancelha.
— Bom, antes de saltarmos para conclusões, acho que temos de analisar o resto. Então… por onde começamos?
Fechei o diário com cuidado e, mesmo no escuro, senti o peso de tudo aquilo que eu não sabia.
— Começamos por ler cada página. E descobrir quem foi Amélia de verdade.

III – Amélia e o Pintor
Amélia segurava com delicadeza o frasquinho de vidro, observando a estranha coloração violácea que se formava quando o pintor mexia com um pincel embebido em flores maceradas. O sol da tarde incendiava o rio Douro ao fundo, lançando uma luz dourada que invadia o pequeno atelier através das janelas empoeiradas. Era um lugar discreto, escondido numa viela estreita da Ribeira, longe dos olhares indiscretos da sociedade portuense — um refúgio secreto onde ela podia, finalmente, ser ela própria.
Estavam num pequeno atelier improvisado, no piso térreo de uma casa decrépita, mas que para Amélia parecia um palácio de possibilidades. O ar cheirava a óleo, terebintina e a algo indefinível que ela associava apenas a ele — a Vasco, o homem de semblante magro, mas com traços fortes, que agora se debruçava sobre o frasco com a concentração de um alquimista.
— Diga-me outra vez, o que é isso? — perguntou Amélia, com os olhos cintilando de curiosidade, enquanto seu coração galopava num ritmo que nada tinha a ver com o medo de ser descoberta.
O pintor, um homem de semblante magro, mas com traços fortes, encolheu os ombros.
— Experimentos, minha senhora. Leio tratados sobre pigmentos botânicos. As flores do vale, quando misturadas a um reagente de ferro, criam este tom escuro. Porém, o curioso é que sob alguma luminosidade diferente, ele se altera…
Ela suspirou, um sorriso quase infantil surgindo-lhe nos lábios. Aquela tinta—por mais bizarra que fosse—parecia o símbolo perfeito para a relação que viviam: discreta, proibida e, na prática, invisível para todos. Entretanto, era intensa e real para eles.
— Parece magia.
Ele sorriu.
— Se acreditarmos que a ciência e a arte podem ser mágicas, então sim. Mas cuidado: não sabemos ao certo se esta solvência é estável.
Amélia assentiu, e o olhar dela mergulhou no do amante. Dali em diante, escreveria tudo o que sentia: as noites sem sono, a paixão desesperada, as juras que poderiam manchar a sua reputação. Sem saber, estava a registar nas páginas do diário um destino que, mais de um século depois, chegaria às mãos de Clara.

IV – A analisar o Diário
Eu e Miguel passámos horas seguidas a analisar cada página do diário sob a luz ultravioleta. Repetíamos o processo: página por página, lenta e metodicamente, esperando que palavras fantasmagóricas surgissem com aquele brilho esverdeado. A certa altura, os meus olhos começaram a doer por causa do contraste de escuridão e feixe UV, mas a curiosidade falava mais alto.
— Olha isto — sussurrei, apontando para um trecho a meio do caderno.
Uma caligrafia delicada, mas aflita, dizia:
“Temo que a família me obrigue a casar. Porém, as minhas lágrimas não podem mudar o destino que a sociedade me impõe. Aconteça o que acontecer, jamais deixarei de amar aquele que deu cor aos meus dias.”
Senti o coração apertar. O tom era de desespero. Ao mesmo tempo, era impossível não traçar um paralelo com o meu próprio divórcio. Eu sabia o que era sentir-se impotente perante as expectativas dos outros.
— Isto parece confirmar o que suspeitávamos — comentou Miguel, sem tirar os olhos das letras esverdeadas. — Amélia estava numa situação tensa, possivelmente entre um casamento forçado e um amor proibido.
Quando levantei o olhar, reparei que Miguel me observava, avaliando a minha reação.
— Desculpa. Estás bem?
— Estou — menti. — Só penso na vida que esta mulher teve. É como se…
— …como se a estivéssemos a ouvir falar, séculos depois.
Ele concluiu a frase de forma surpreendentemente suave, e aquilo tocou-me. Quase me esqueci da tensão que, por vezes, pairava entre nós.
Desviei o olhar. Precisava continuar. Virei outra página, mas, desta vez, nada de invisível surgiu. Suspirei e fechei o diário.
— Acho que por hoje chega — disse, exausta. — Amanhã podemos rever isto com mais calma.
— Concordo — Miguel ajeitou os papéis com cuidado. — Se calhar temos de investigar datas, documentos de registo de casamento, esse tipo de coisas. Se soubermos a época aproximada, podemos tentar confirmar a identidade de Amélia em arquivos históricos.
Ele saiu da cozinha pouco depois, deixando-me sozinha com o diário sobre a mesa. Antes de ir para o meu quarto, folheei uma última vez aquelas páginas antigas e suspirei: havia mais ali do que palavras. Havia um peso, um fantasma de segredos que eu sentia como se pertencessem à minha própria história.

V – Amélia, a Família e o Pintor
Os corredores do solar da família Monte Real exalavam pompa e austeridade. Por entre as tapeçarias e os candeeiros dispostos em sequência, Amélia caminhava de cabeça baixa, os pensamentos a fervilhar. Sentia-se fragmentada, dividida entre dois caminhos que pareciam igualmente intransitáveis. A cada passo, o peso do segredo que carregava no ventre parecia aumentar, como se a própria vida que crescia dentro dela estivesse a reclamar o direito de existir livremente.
Já passavam das dez horas da noite, mas a casa estava bem acordada. O patriarca, Dom Augusto, convocara uma reunião de emergência para “corrigir” a conduta da filha. Amélia sabia o que isso significava — mais uma tentativa de domar o seu espírito, de forçá-la a seguir um caminho que nunca escolhera. A ideia de enfrentar o pai, a tia, e toda a força implacável das convenções sociais fazia-a tremer por dentro, mas algo mais profundo — algo tão selvagem e determinado quanto o amor que sentia por Vasco — dava-lhe uma coragem que desconhecia possuir.
Na grande sala de estar, a luz trémula das velas lançava sombras inquietantes nas paredes. Amélia viu o pai, de bigode farto e expressão dura, e a mãe, sempre submissa às decisões dele. Ao lado, sentava-se a sua tia, uma mulher magra, com olhos que brilhavam entre a reprovação e o escândalo.
— Amélia — a voz de Dom Augusto ressoou. — Recebi a informação de que tens passado tempo demais fora de casa, sem a devida escolta. Já ouviste os mexericos que correm pela cidade?
Ela sentiu o rosto corar, mas tentou manter a compostura.
— São apenas boatos, meu pai. Saio para pintar, para passear nos campos… não há nada de reprovável nisso.
A tia pigarreou, lançando um olhar reprovador.
— Uma jovem da tua posição não deve andar por aí sem acompanhamento, principalmente quando há rumores de que te relacionas com um homem… sem título nem fortuna.
— É um pintor, tia — Amélia rebateu, olhando para as próprias mãos.
— Um pintor! — A indignação do pai quase fez tremer as janelas. — Não tens juízo! Já marcámos o teu noivado com o Visconde de Alencar.
O coração de Amélia disparou. Lágrimas ameaçaram surgir, mas ela lutou contra elas.
— Mas eu não amo esse visconde! — murmurou, temendo a explosão do pai.
— Eu não te pedi para amares, pedi para obedeceres!
A raiva e o desespero cresceram dentro dela. Foi então que se lembrou das recentes visitas ao atelier do seu amado. Lembrou-se da tinta misteriosa e de como ele falava que, em condições especiais, as cores revelavam segredos que a luz comum escondia. De certa forma, Amélia viu-se naquela comparação: a sua dor e os seus desejos eram invisíveis para a sociedade, mas pulsavam intensamente no seu íntimo.
— Tens sorte de te oferecermos essa oportunidade — a tia acrescentou, num tom venenosamente suave. — Vais receber um dote para viveres em conforto. Mais do que qualquer pintor falido poderia te dar.
As mãos de Amélia tremiam. Queria berrar, queria dizer que não suportava aquela vida de aparências. Mas calou-se. Sabia que não havia espaço para a sua voz. Precisava pensar em como fugir daquele destino — ou sucumbir a ele.

VI – Na Biblioteca/Arquivo Histórico)
No dia seguinte, combinámos ir à pequena biblioteca municipal do Porto. Miguel garantira-me que ali havia alguns arquivos digitalizados relativos às famílias aristocratas da região. Passámos a manhã a pesquisar nomes, títulos, relações de parentesco.
— Vê aqui: “Família Monte Real” … — Miguel apontou para o ecrã do computador. — Uma das mais importantes do século XIX, tinham várias propriedades no Norte.
— Bate certo com o sobrenome que encontrei rabiscado nas margens do diário — comentei, relembrando as anotações já legíveis.
Fui avançando nos registos e descobri um documento que mencionava uma tal de “Amélia Monte Real” e um contrato de casamento assinado com um homem intitulado “Visconde de Alencar”.
— Então é ela — apontei para o monitor. — A nossa Amélia.
Havia uma data: 1889. Senti um arrepio. Quase 150 anos depois, estava eu a olhar para aquele contrato, como uma testemunha tardia da tragédia que se avizinhava.
— Curioso, não encontrei referência a um descendente direto de Amélia com este Visconde — Miguel estranhou, passando mais registos. — É como se… nada tivesse acontecido depois. Talvez ela não tenha tido filhos do casamento.
Lembrei-me das passagens invisíveis do diário, que falavam de gravidez. Teria ela engravidado do pintor, antes do casamento? E a criança, para onde foi?
— É provável que a família tenha abafado tudo — falei, sentindo um nó na garganta. — O diário deve ser a única prova real.
Olhei para Miguel, e, por um instante, vi no seu rosto mais do que simples curiosidade histórica. Havia compaixão e uma indignação contida. Vi-me refletida naquela dor que, de algum modo, também era minha — a de viver situações em que nos tiram a liberdade de escolha.
— Precisamos encontrar o resto das passagens ocultas — concluiu ele, como se lesse a minha mente. — E se houver um registo de nascimento, adoção, algo assim?
Assenti. Sabia que quanto mais fundo cavássemos, maior o ensejo de depararmos com segredos perturbadores. Mas eu também sabia que não conseguiria parar. Era como se a voz de Amélia gritasse do passado: “não me deixes calada”.

VII – Plano de Fuga
Enquanto a grande casa Monte Real adormecia, Amélia correu para o portão dos fundos, vestida com um manto escuro para não ser reconhecida. O coração dela batia acelerado, tanto de medo quanto de esperança.
O pintor a esperava, escondido pela sombra de uma velha figueira. Ao vê-la aproximar-se, respirou de alívio e avançou para segurá-la nos braços.
— Estás bem? — perguntou, a voz trémula de ansiedade.
— Não. O meu pai já marcou a data do casamento. Daqui a semanas, serei obrigada a casar… e agora, com o que descobri…
Ela colocou a mão sobre o ventre, e o pintor arregalou os olhos.
— Tens a certeza?
— As parteiras da casa desconfiam. Em breve todos saberão.
Os dois abraçaram-se, partilhando do mesmo desespero. Foi então que o pintor lhe estendeu uma pequena bolsa de couro.
— Talvez precisemos disto. Tenho… algum dinheiro e… — hesitou. — Algumas substâncias que me têm ajudado a criar pigmentos.
Amélia conhecia bem os frascos estranhos que ele costumava manipular para obter as tintas raras. Mas também sabia que alguns reagentes podiam ser fatais se mal utilizados. Sentiu um calafrio.
— Queres que fujamos?
— Sim, antes que seja tarde.
Ela mordeu o lábio inferior, pesando as consequências. Mas não conseguia imaginar uma vida inteira presa a um homem que não amava.
— Arranjarei maneira de voltar aqui nos próximos dias. Mas preciso… de algum tempo. Não posso partir sem pensar nos criados que dependem de mim, na minha mãe…
— Amélia, ou arriscamos tudo agora, ou perdemos para sempre.
Aquela última frase pairou no ar, deixando o destino deles em suspenso. Ninguém
poderia imaginar os limites a que chegariam para defender o amor — ou para tentar salvar a própria liberdade.

VIII – Na casa antiga
O sol da manhã entrava pelas janelas altas do salão principal, iluminando a poeira que dançava no ar. Apesar de ser dia, a casa continuava a parecer sombria, como se os fantasmas da época de Amélia se recusassem a desaparecer com a claridade. Eu e Miguel analisávamos objetos que achei no sótão: uma pequena escrivaninha portátil, um candeeiro de vidro fumado e, sobretudo, um conjunto de retratos que decidi descair, para ver melhor.
— Vê este aqui — disse, apontando para uma pintura a óleo de uma jovem trajada em vestes luxuosas. O rosto oval, a expressão entre o melancólico e o audacioso. — A semelhança com o retrato que encontrei numa página do diário é incrível. Acredito que seja ela… Amélia.
Miguel aproximou o rosto, atento aos detalhes.
— Sim, é quase certo. Repara como o vestido tem aquele padrão típico de meados do século XIX. E o pintor… — Ele ergueu as sobrancelhas, aproximando-se para ver melhor o canto inferior do quadro. — Há um nome aqui, meio apagado.
Eu inclinei-me, sussurrando o suposto nome: “Vasco…?”
— Vasco da Cunha, talvez? — arrisquei. — O que achas?
— Pode ser, mas está muito desbotado — Miguel encolheu os ombros. — Seria o pintor pobre por quem Amélia se apaixonou? Ou alguém da família dela?
O coração saltou-me no peito ao pensar que, talvez, estivéssemos diante do trabalho do próprio amante proibido. A tinta, o estilo, o olhar… tudo parecia exalar a tal paixão contida.
— Se for o trabalho dele — Miguel olhou-me com uma fascinação nova —, então estás, literalmente, a segurar parte da história deles nas mãos.
Não me contive e sorri. Sentia uma estranha mistura de êxtase e medo. Mal conhecia aqueles antepassados, mas já me parecia que os seus dramas corriam nas minhas veias.
Respirei fundo, imaginando o que ainda iria descobrir.

IX – No quarto de Amélia
Amélia terminava de arrumar alguns pertences num pequeno baú, as mãos trémulas de nervosismo. Uma criada de confiança, Olívia, ajudava-a em silêncio, repartindo vestidos simples, frascos de cosméticos e alguns pertences pessoais. A noite estava tensa: dentro de poucos dias, Amélia seria entregue a um casamento que não desejava.
— Tem mesmo a certeza de que vai fugir, menina? — sussurrou Olívia, olhando para a porta, temendo ser ouvida pelos corredores. — E quanto à sua mãe?
— Não posso ficar. O meu pai… ele vai fazer de mim uma prisioneira para agradar aos interesses da família. — Amélia deteve-se, apertando contra o peito um relicário em formato de coração. — Prometo a mim mesma que encontrarei uma forma de cuidar da minha mãe, mesmo de longe. Mas preciso salvar a minha vida… e a do meu bebé.
Olívia levantou os olhos, surpresa, mas manteve a compostura.
— E o jovem pintor? Ele vai ajudá-la?
— Vai. Vamos tentar partir antes do amanhecer.
Nesse instante, ouviram-se passos no corredor. Amélia escondeu o baú debaixo da cama e sinalizou à criada para se retirar. A porta abriu-se com violência, revelando a tia, que empunhava uma lamparina a óleo.
— O que se passa aqui? — A tia estreitou os olhos, reparando na agitação da sobrinha.
— Estou só a guardar algumas roupas — Amélia esforçou-se para parecer serena. — Aproxima-se o casamento, e pensei em organizar o meu quarto.
A tia, desconfiada, avançou um passo, iluminando o rosto de Amélia com a chama.
— Espero que estejas consciente das tuas obrigações. Dom Augusto não permitirá qualquer rebeldia.
— Claro. — Amélia forçou um sorriso suave, escondendo a repulsa que lhe queimava a garganta.
Mal a tia saiu, Amélia voltou a respirar. O risco de ser apanhada era cada vez maior. Mas o amor que nutria pelo pintor (e a vida que crescia no seu ventre) gritavam mais alto do que o medo.

X – Investigando o Pintor
Passaram-se alguns dias de pesquisa intensa. Eu e Miguel vasculhámos tudo: arquivos municipais, igrejas, alfarrabistas, até páginas de genealogia na Internet. A certa altura, encontrei um registo tímido sobre um Vasco da Cunha, pintor autodidata de origem humilde, que viveu em meados do século XIX, na região do Norte. Havia rumores de que teve um caso com uma senhora da aristocracia, mas nenhum registo oficial de casamento ou descendência.
— Parece que é ele, Clara. — Miguel pousou uma mão leve no meu ombro. — Tudo encaixa. O estilo do quadro, a data, a localidade.
Senti o estômago revolver.
— Então… Amélia e Vasco da Cunha foram amantes. E ela engravidou antes de ser obrigada a casar com o Visconde de Alencar.
— É o cenário perfeito para um escândalo naquela época — acrescentou Miguel, e em seguida baixou a voz. — E quanto ao tal envenenamento? Encontraste mais alguma pista?
Neguei com a cabeça, cansada.
— Desde aquela frase escondida no diário — “Prometo que tudo farei para proteger o que é meu…” —, não descobrimos mais nada de concreto. Só fragmentos meio apagados.
— Precisamos testar outras páginas sob a luz UV. Pode haver mais texto oculto nos cantos, ou em margens que ainda não analisámos detalhadamente.
Encostei-me à cadeira e afastei um tufo de cabelo que me caía sobre o rosto.
— Eu sei. Mas… confesso que me sinto nervosa, como se estivesse a abrir uma ferida. Parte de mim quer descobrir toda a verdade. Outra parte… tem medo do que isso vai significar para mim, para a memória da minha família.
Miguel ajoelhou-se ao meu lado, nivelando o olhar com o meu.
— Seja o que for, não tens culpa. O passado é o passado. E só o conhecendo podemos fazer as pazes com ele.
Os olhos dele tinham um brilho de sinceridade que me desarmou. Tive vontade de agradecer, mas as palavras fugiram-me. Em vez disso, apenas assenti, sentindo algo de caloroso formar-se entre nós.
Para quebrar o silêncio, agarrei o diário e levantei-me.
— Vamos tentar outra vez. Quem sabe não descobrimos mais alguma passagem sublinhada… ou até um bilhete escondido.
Ele sorriu, erguendo a pequena lanterna UV.
— Estou contigo.

XI – O Casamento Iminente
Nos salões engalanados da grande casa Monte Real, servos corriam para todos os lados a fim de ultimar os preparativos da boda que aconteceria na semana seguinte. Dom Augusto não poupava esforços para que a festa fosse comentada pela sociedade. Trajes, flores, banquete… tudo escolhido ao pormenor para receber o Visconde de Alencar e sua família.
Amélia andava como um fantasma pelos corredores, a face pálida, o coração apertado. Ninguém suspeitava do segredo que lhe crescia no ventre — ou, se suspeitavam, fingiam não ver. Já não tinha liberdade sequer para sair ao jardim sozinha; a tia vigiava-a constantemente.
Desesperada, encontrou um momento de folga depois do almoço, quando a tia cochilava no quarto. Desceu até o salão, olhando à volta para se certificar de que não havia ninguém. Com passos rápidos, enveredou por um corredor lateral que dava para a biblioteca da casa. Trancou-se lá dentro, puxou o diário da saia e começou a anotar o que sentia, usando a tão falada tinta peculiar que o seu amado pintor desenvolvera.
“Não sei quanto mais vou aguentar. O casamento está marcado e a minha mãe não me defende. Tenho medo. O Visconde… o pouco que o conheci… parece ser um homem duro, violento.
Mas não desistirei. A tinta que Vasco me deu não serve apenas para pintar… Ele disse que, com alguma alteração, poderia até… (mancha de tinta) …reforçar a minha coragem se tudo falhar.”
A pena tremeu na mão de Amélia. Assustada, percebeu que escrevia coisas demasiado diretas que, se lidas, a poderiam incriminar. Parou, olhou para o frasco de líquido arroxeado e recordou-se das palavras do pintor: “Algumas substâncias podem ser perigosas; depende da dosagem e da forma de uso.”
Fechou o diário e escondeu-o novamente. Tinha um plano — audacioso, desesperado — mas ainda não tinha certeza se teria coragem de o levar até ao fim.

XII – Revelação sob UV
Já passava da meia-noite quando eu e Miguel, de volta à cozinha da casa antiga, decidimos insistir numa análise mais minuciosa do diário. Pusemos luvas para manusear as páginas e usamos uma lupa combinada com a luz ultravioleta.
Depois de quase uma hora, quando o cansaço já me fazia pestanejar, algo brilhou no rodapé de uma das últimas páginas: letras minúsculas, escritas quase como se fossem um rodapé de rodapé.
— Olha aqui, Clara. — A voz de Miguel estava excitada. — Tem algo.
Aproximei o feixe roxo sobre a página, e vi surgir um texto em linhas minúsculas:
“(…) Não há outra saída. Ele não terá piedade. Ou eu fujo, ou cumpro a minha promessa. A vida dele está nas minhas mãos, e as mãos dele… nas minhas. Jamais deixarei de ser quem sou.”
Eu congelei. As mãos tremiam-me tanto que quase deixei cair a lupa.
— Ela… vai mesmo envenenar alguém — murmurei. — E a forma como escreve… parece não estar a falar do pai. Será do Visconde?
Miguel passou a mão pelo queixo, pensativo.
— É muito provável. Se ela fosse obrigada a casar e a viver em cativeiro emocional, talvez o envenenamento fosse a saída extrema. As entrelinhas sugerem isso: “Ele não terá piedade”.
Pousei o diário sobre a mesa e encostei as mãos na cabeça, atordoada.
— Meu Deus… ela estava tão assustada e, ao mesmo tempo, tão decidida. Nunca pensei que alguém da minha família pudesse…
— Clara — Miguel tocou-me no braço —, precisas lembrar-te de que cada pessoa tem os seus limites. A Amélia viveu num tempo em que as mulheres não tinham praticamente opções.
Fechei os olhos e deixei escapar um suspiro trémulo. Tinha vontade de chorar pela dor daquela mulher, mas também me sentia estranhamente orgulhosa dela, por lutar. Ainda assim, a ideia de um crime pesava no meu peito.
— E se foi tudo em vão? Ela conseguiu fugir? Foi apanhada? Teve o filho? — perguntei, perdendo a voz.
Miguel não respondeu. Não porque não quisesse, mas porque não tínhamos ainda a resposta. As últimas páginas do diário estavam manchadas, e a escrita invisível parecia dispersa.
— Temos de continuar a procurar —disse ele, por fim. — Talvez haja outro caderno, outras cartas, documentos… Essa casa é enorme, e ainda não viste metade dos papéis que jazem no sótão.
Assenti, sentindo-me exausta e cheia de perguntas sem resposta. Mas, lá no fundo, algo em mim despertava. Eu precisava de saber o que aconteceu com Amélia — e com essa criança que, no fim das contas, podia ser a minha ancestral direta.

XIII – Véspera da Boda
A noite anterior ao casamento chegou. O salão estava decorado com flores brancas, castiçais polidos e uma longa mesa cheia de iguarias. As velas tremeluziam numa atmosfera de falsa comemoração, ignorando o turbilhão que se passava na alma de Amélia.
No quarto da noiva, a tia terminava de ajustar o último bordado do vestido, satisfeita com a imponência do tecido e dos adornos.
— Amanhã, ao meio-dia, serás apresentada ao Visconde, e juro-te que farás a figura mais bela do condado — dizia com um meio sorriso que, para Amélia, soava cruel.
Olhando o reflexo no espelho, Amélia viu uma jovem pálida, de olhar perdido, e teve de conter as lágrimas. Sob aquele vestido, a vida que carregava crescia, e ela temia que fosse descoberta a qualquer instante.
Finalmente, a tia saiu para conferir outros preparativos. Sozinha, Amélia abriu a gaveta do toucador e retirou um pequeno frasco, contendo o líquido arroxeado e denso que o pintor lhe oferecera. Num rótulo quase apagado, lia-se “Com Cuidado”. Na outra mão, tinha o anel de noivado que o pai a obrigara a usar.
O dilema era insuportável: aplicar ou não o veneno? Fugir naquela noite, de qualquer forma, seria quase impossível — guardas e criados rodavam a casa. Faltava-lhe o apoio do pintor, que prometera encontrá-la, mas não aparecera nas últimas 24 horas. O que teria acontecido?
Amélia respirou fundo, encostou a testa ao espelho, fechou os olhos por um momento.
Se não conseguires chegar, Vasco, pensou, terei de enfrentar tudo sozinha.

XIV – A Noite de Núpcias
As badaladas do meio-dia ecoaram pela propriedade Monte Real no dia seguinte, e o casamento entre Amélia e o Visconde de Alencar oficializou-se com pompa e circunstância. A cerimónia na capela foi solene, mas carregada de uma tristeza que não se ousava nomear. Amélia, de rosto inexpressivo, seguia os gestos, recitava as palavras necessárias; o pai e a tia mantinham sorrisos rígidos, receosos de qualquer escândalo de última hora. O pintor não apareceu, e ela passou o ritual inteiro sem saber se isso lhe doía mais ou a ausência de escolha.
Quando a festa terminou, a família recolheu-se para que os recém-casados viajassem até a casa de campo do Visconde, onde passariam a lua de mel. No entanto, o homem decidiu permanecer uma noite a mais ali, na grande casa de Monte Real, para cuidar de “questões de dote e assinatura de documentos.”
O quarto do casal ficava no último andar, uma ala reservada e longe dos outros aposentos, sob o olhar atento da tia, que não deixava de rondar os corredores. Lá dentro, Amélia tremia, tentava conter as lágrimas, enquanto o marido — corpulento, de feições duras — a observava de cima abaixo, como se fosse um objeto recém-adquirido.
Visconde (sem rodeios): — Parece que hoje é a noite de consumarmos o nosso pacto.
Amélia (trémula): — Sim… meu senhor.
Ela não sabia onde guardara forças para falar tão baixinho. Sentia-se tonta, o coração disparado. Por dentro, lembrava-se do frasco arroxeado que tinha escondido entre os pertences. Caso algo saísse do controlo, seria aquilo a sua última defesa.
Visconde: — Espero que não me trates com desdém. Afinal, foi teu pai quem insistiu muito neste casamento… Mas tenho os meus caprichos. E serás, a partir de agora, totalmente minha.
O relógio marcava perto das três da madrugada quando Amélia, sem conseguir dormir, perambulava pelos corredores daquela ala isolada da casa. O Visconde repousava no quarto, entorpecido pelo vinho. Cada passo que ela dava parecia contar os segundos de uma ampulheta invisível, marcando o tempo da sua última oportunidade de escolher o próprio destino.
A cada palavra, um arrepio percorria as costas de Amélia. Pensou em Vasco, em como o pintor deveria ter planeado resgatá-la antes do casamento — e, no entanto, ele não viera. “Terá sido ameaçado?”, perguntava-se. “Ou desistiu de mim?”
Com os nervos à flor da pele, engoliu em seco. Precisava manter a compostura para não despertar a ira do Visconde. Pegou uma garrafa de vinho finíssimo que fora deixada ali como presente e encheu duas taças. Devia ou não misturar o veneno? A mão tremeu.
Visconde (reparando no tremor): — Estás nervosa… Não há necessidade disso. Logo te habituarás à minha presença.
Ele agarrou-lhe a mão com força e puxou-a para perto.
Com o coração aos saltos, Amélia percebeu o quão perto estava de tomar a decisão fatal. Mas hesitou. Porque, ao mesmo tempo que odiava a ideia de pertencer a um homem que mal conhecia — e que a tratava como posse —, sentia um pavor enorme de cometer um crime, de carregar nos ombros a culpa para sempre.
Amélia (tentando ganhar tempo): — Vou… ver se encontro algo para comermos. A noite é longa.
Andou em direção à cozinha, na esperança de não ser vista, o coração batendo tão forte que temia que o som ecoasse pelas paredes. O pequeno frasco de líquido arroxeado, guardado na bainha do vestido, parecia queimar contra a sua pele como uma brasa viva — um lembrete constante da escolha impossível que tinha à sua frente. Usá-lo significaria cruzar uma linha de onde não haveria retorno; não o usar condenaria a si e ao seu filho a uma vida de submissão e dor.
Num gesto brusco, o Visconde pegou a taça das mãos dela e bebeu um grande gole, sem notar qualquer alteração. Amélia respirou fundo: ainda não era o momento. Precisava afastar-se, organizar os pensamentos… e descobrir o que realmente acontecera com Vasco.
Amélia pensou: — sem ele, estou sozinha no mundo. O meu pai não me ajuda, a tia é uma bruxa, e este homem que me tomará por esposa… é cruel, eu sei.
Com uma determinação renovada, esperou pelo momento certo. As horas passavam, a casa dormia, e ela aguardava — um predador paciente prestes a dar o golpe final pela sua liberdade.

XV – Descoberta Inesperada
Enquanto lidava com o turbilhão de emoções que me invadia, continuei a examinar a casa com Miguel. Desta vez, subimos a um sótão menor, localizado numa ala que eu desconhecia. Era um espaço repleto de móveis velhos, com nichos cobertos de teias de aranha.
— Queres mesmo mexer nisso agora? — Miguel olhou para um armário antigo, cheio de gavetas.
— Quanto mais cedo, melhor — respondi, determinada. Sentia que íamos encontrar algo mais.
Puxei a primeira gaveta, vazia. A segunda, cheia de papéis inúteis — listas de compras, contas antigas de eletricidade (depois da casa ser modernizada). A terceira gaveta, porém, estava bloqueada. Forcei um pouco, e o puxador cedeu com um estalo. Abri-a finalmente e, lá dentro, havia algo enrolado em tecido. Desfiz o embrulho com cuidado.
— Que é isto? — perguntei, intrigada. Parecia um livro de capa negra, menor que o diário de Amélia, mas semelhante em estilo, e com fechos metálicos já enferrujados.
Miguel aproximou-se:
— Abre.
— Estou a tentar, mas está colado.
Com delicadeza, usei uma pequena espátula para separar as páginas coladas pela humidade. Aos poucos, conseguimos folhear o que parecia ser um caderno de anotações de Vasco da Cunha. Havia rascunhos de desenhos, esboços de retratos — muitos lembravam traços de Amélia — e observações sobre mistura de tintas.
— É o caderno dele. — A minha voz saiu num sussurro. — O pintor.
— Repara aqui — Miguel apontou para um trecho em caligrafia inclinada: “Pigmento violeta n.º 6, obtido a partir de flores silvestres e reagente férrico.”
O coração acelerou-me. Era a receita da “tinta invisível”! Talvez fosse este o elo que faltava para entendermos de que forma Amélia e Vasco pretendiam usá-la. Avançámos mais algumas páginas e, subitamente, surgiu uma anotação que me fez o estômago retorcer:
“Arranjei hoje uma porção extra de reagentes. Amélia teme pela sua vida e pela do bebé. Se não chegar a tempo de impedir o casamento, ela usará o que for preciso para se libertar…”
Ao ler aquilo, engoli em seco. Então Amélia realmente preparava-se para um ato extremo. O pintor estava consciente desse perigo. Mas por que não chegou a tempo?
— Precisamos verificar as páginas finais — Miguel comentou, tão tenso quanto eu. — Quem sabe há alguma explicação do que aconteceu depois.
Fui virando as folhas, mas muitas estavam tão coladas ou manchadas que era impossível ler. A última anotação legível datava de dois dias antes do casamento, mencionando uma briga com “alguém influente” da família Monte Real. Parecia que Vasco fora confrontado e, talvez, ameaçado.
Olhei para Miguel, e percebi no semblante dele a mesma inquietação que eu sentia.
— Isto só prova que ele foi afastado à força.
— E Amélia ficou sozinha. — Miguel completou, com um suspiro resignado. — A pergunta é: o que ela fez, afinal?

XVI – Decisão de Amélia
O relógio marcava perto das três da madrugada quando Amélia, sem conseguir dormir, perambulava pelos corredores daquela ala isolada da casa. O Visconde repousava no quarto, entorpecido pelo vinho. Ela tinha evitado consumar o casamento alegando tonturas e náuseas, e ele, já alcoolizado, deixou passar.
Andou em direção à cozinha, na esperança de não ser vista. Precisava de ar, de uma forma de agir. Se Vasco não viera, era sinal de que algo terrível acontecera. Ela sentia — era uma certeza aguda no peito.
Amélia pensou: — sem ele, estou sozinha no mundo. O meu pai não me ajuda, a tia é uma bruxa, e este homem que me tomará por esposa… é cruel, eu sei.
As palavras do pintor ecoaram na cabeça dela: “Se for preciso, usa a química a teu favor.” E o tal frasco arroxeado, guardado na bainha do vestido, parecia pesar cem vezes mais do que de costume.
Chegou à cozinha, onde só uma lamparina fraca iluminava os utensílios. A velha Olívia — a criada fiel — estava ali, enrolada num xaile, talvez vigiando ou esperando a patroa aparecer. Ao ver Amélia, ergueu-se:
Olívia: — Minha menina, o que está a fazer?
Amélia: — Não consigo dormir. O Visconde… ele… — a voz embargou-se. — Preciso de ajuda.
Olívia abraçou-a, oferecendo um consolo que ninguém mais na casa se atrevia a dar.
— Minha filha, se tens alguma saída, não hesites. Eu ajudo-te no que puder.
Amélia inspirou fundo e abriu a mão, mostrando o frasco.
— Não posso viver prisioneira. Estou prestes a perder tudo. Não sei se tenho coragem de… de o envenenar. Mas se ele for violento, ou se insistir em me… forçar, eu… — as lágrimas molhavam-lhe o rosto.
A criada fechou os olhos, compreendendo a gravidade da situação.
— Talvez a fuga ainda seja possível. Amanhã de madrugada, podes tentar sair pelos estábulos…
— E se ele me descobrir? Se vier atrás de mim? — A voz de Amélia tremeu. — Estou grávida. Não terei forças para enfrentar uma perseguição.
Olívia estendeu um pano e limpou o rosto de Amélia. Em seguida, segurou o frasco das mãos dela e, com cuidado, guardou-o num bolso oculto do avental.
— Não tomes decisões precipitadas. Faremos o seguinte: tentas fugir. Se tudo falhar… tens isto.
Amélia assentiu, sentindo um misto de esperança e horror. Estava a confiar sua alma a uma criada fiel, mas o risco era imenso. A cada batida do seu coração, a noite parecia mais longa e carregada de destino.

XVII – Um Olhar Sobre as Ruínas
Depois de encontrarmos o caderno de Vasco, senti necessidade de espairecer. Convidei Miguel a darmos uma volta pelo quintal da casa, onde algumas estruturas antigas, já em ruínas, testemunhavam a passagem do tempo.
Passámos por um arco de pedra que dava para um jardim abandonado. Os arbustos cresciam sem forma, e trepadeiras subiam pelos muros de pedra, criando um cenário meio místico, meio decadente.
— Imagina, Miguel, que há quase duzentos anos isto devia ser magnífico. Pode até ter sido o local onde Amélia e Vasco se encontravam às escondidas.
— É bem provável — concordou, tirando algumas fotos com o telemóvel. — Este espaço tem um ar meio romântico, meio esquecido.
Paramos junto a um poço antigo, cuja tampa de madeira estava apodrecida. Olhei para dentro: só vi um breu profundo. O vento soprou, levantando folhas secas. Senti um arrepio.
Clara (pensando alto): — Será que é aqui que jazem os segredos da minha família? Talvez haja algo enterrado ou escondido.
Miguel: — Pode ser que alguns documentos tenham sido jogados fora. Ou até algo mais sinistro…
A forma como ele terminou a frase deixou-me inquieta. “Algo mais sinistro” pairava por toda a história de Amélia. A mera ideia de que o corpo de alguém pudesse ter sido atirado ali, ou que provas de um crime estivessem soterradas, fez-me estremecer.
— Gostavas de explorar o interior do poço? — perguntei, meio a brincar, mas meio séria.
— Bom, sou curioso…, mas já é pedir demais — ele riu sem muita convicção. — Talvez com cordas e lanternas, um dia, se quiseres investigar.
Sorri, mas a verdade é que o ar ao redor parecia pesado. Recuperei a voz:
— Acho que precisamos voltar à pesquisa documental. Falta cruzar informações. Há um manuscrito de registo de óbitos antigos na biblioteca, lembraste? Quem sabe encontramos notas sobre o falecimento do Visconde. Ou mesmo referências a um “bebé” Monte Real.
Miguel assentiu.
— Tens razão. Quanto mais pistas juntarmos, maior a hipótese de encontrarmos uma explicação definitiva.
Enquanto retornávamos para dentro de casa, lancei um último olhar ao poço. Qualquer coisa me dizia que aquele lugar não era apenas um cenário. Talvez fosse uma metáfora do que eu estava a fazer: mergulhar cada vez mais fundo numa escuridão cheia de segredos, rezando para voltar à superfície com a verdade.

XVIII – Tentativa e Fuga
Quando o canto distante do galo anunciou as primeiras luzes da manhã, Amélia, com a ajuda de Olívia, vestiu-se discretamente e preparou uma mochila pequena. A noite fora tensa: ouvira o Visconde ressonar, temendo que a qualquer momento ele acordasse e a impedisse de sair.
Olívia: — Anda. Enquanto todos dormem, tens algumas horas até que percebam a tua ausência.
Amélia: —E tu? Podes ser punida por me ajudares.
Olívia: — Não te preocupes. Direi que não vi nada. Se a minha sina for ser despedida, ao menos terei a consciência limpa.
As duas desceram cautelosamente as escadas, contornando as alas onde dormiam os criados. Quando chegaram à porta lateral, próxima dos estábulos, uma figura emergiu das sombras: a tia de Amélia.
Tia (com voz venenosa): — Acham mesmo que sou tão estúpida a ponto de não notar as vossas mexidas?
Amélia: — Tia, por favor, deixe-me passar! Não tem o direito de me aprisionar assim!
Tia: — O teu pai não permitirá este escândalo. Acha mesmo que podes fugir e viver como? Na rua?
A mulher segurou Amélia pelo braço, impedindo-a de avançar. A tensão no ar ficou sufocante.
Olívia tentou intervir, mas a tia, decidida, tentou empurrá-la para o lado. Foi nesse momento que se ouviu um barulho de passos pesados no corredor: o Visconde surgia, furioso, de roupão.
Visconde (gritando): — Então é isso? Ia fugir, minha adorável esposa?
Amélia: — Larguem-me! Não sou propriedade de ninguém!
Em pânico, Amélia recuou, mas o Visconde avançou, agarrando-a pelos ombros. Nesse entretanto, Olívia viu a tia erguer um braço como se fosse esbofetear Amélia, e colocou-se no meio. Houve um empurrão confuso; a tia desequilibrou-se e estatelou-se no chão, soltando um grito de raiva.
Visconde (erguendo a mão contra Amélia): — Mulher insolente! Vais aprender o teu lugar…
Naquele instante, algo dentro de Amélia se quebrou. Sentiu um impulso de proteger não só a si mesma, mas também o filho que carregava. Com o coração a mil, tentou libertar-se do aperto do Visconde e sentiu no bolso do vestido o frio metálico do frasco de veneno que Olívia lhe devolvera. Num movimento quase instintivo, bateu o frasco contra o chão e abriu-o, espalhando parte do conteúdo.
O Visconde soltou uma praga, recuando um passo — talvez para não se manchar. A tia ergueu-se, furiosa, mas sem perceber bem o que estava a acontecer. Amélia aproveitou o momento de confusão para correr em direção à porta. E correu… correu como se o diabo a perseguisse. Não sabia para onde ia, mas precisava sair dali.
Os primeiros raios da manhã tocavam a relva orvalhada, enquanto Amélia corria por entre as árvores, o coração em sobressalto. O vestido prendia-se nos galhos, mas ela não parava. Precisava sair da propriedade Monte Real antes que o Visconde e a tia a alcançassem.
Não demorou para ela ouvir, ao longe, gritos de criados e barulhos de passos apressados. A perseguição começava.
Por sorte, conseguiu chegar a um portão lateral de ferro, parcialmente enferrujado, que dava acesso a um caminho secundário. Arfante, empurrou o portão com toda a força, escutando o som estridente das dobradiças. Sabe-se lá como, conseguiu passar. Correu ainda por mais alguns metros, até se ver na estrada de terra que serpenteava em direção à aldeia mais próxima.
Amélia pensou: “Será que Vasco está lá? Será que foi capturado? Como vou sobreviver…?”
Carregava a pequena mochila onde guardara os poucos pertences: um pouco de dinheiro, algumas roupas simples, o diário e um resto do frasco arroxeado. O medo de que o Visconde a apanhasse misturava-se à esperança de que Vasco estivesse à espera, algures no caminho.
Por fim, exausta, encontrou um velho carvalho de galhos retorcidos e decidiu esconder-se por trás dele. Precisava recuperar o fôlego e avaliar se era seguro avançar. Sentia o bebé dar leves pontapés, lembrando-lhe que corria não só por si mesma.
Então, ouviu trotes de cavalos. O coração quase saltou pela boca: dois criados da propriedade passaram rente ao carvalho, gritando o nome dela e da criada Olívia. Felizmente, não a viram. Amélia, encolhida, fechou os olhos e rezou em silêncio, pedindo a Deus que a protegesse.
Mal desapareceram, ela voltou a correr. Precisava chegar à aldeia antes de ser cercada.

XIX – Documentos Decisivos
Ao final da tarde, meti-me na carrinha e fui com Miguel à biblioteca municipal para vasculhar mais uns registos antigos, que estavam guardados numa sala reservada. Explicámos à bibliotecária que pesquisávamos genealogia e que queríamos dados específicos sobre óbitos e nascimentos ligados à família Monte Real ou ao Visconde de Alencar.
A bibliotecária, uma senhora de óculos pendurados ao pescoço, chamou-nos à parte:
Bibliotecária: — Há uns registos especiais que não estão digitalizados. Estão num anexo. Chama-se “Caderno de Assentos Especiais e Ocorrências Incomuns”. Podem vir comigo.
O coração deu-me um pulo. “Ocorrências Incomuns” era exatamente o tipo de coisa que poderia mencionar um crime, um desaparecimento ou algo do género. Seguimos a senhora por um corredor estreito, até uma sala cheia de caixas de arquivo.
Ali, ela puxou um volume encadernado em couro, com aparência bem antiga, e estendeu-nos:
Bibliotecária: — Foi compilado por um padre há muitos anos, contendo casos fora do comum na região. Não sei ao certo o que vão encontrar, mas sintam-se à vontade para pesquisar.
Agradecemos. Ao abrirmos o livro, notámos anotações manuscritas, datas, nomes – uma miscelânea de pequenas histórias. E, numas folhas amareladas, surgiu finalmente algo que nos fez prender a respiração.
“07 de Junho de 1889. Foi relatado o desaparecimento repentino da Esposa do Visconde de Alencar, em circunstâncias misteriosas. A jovem Amélia Monte Real ter-se-ia ausentado da propriedade horas depois do casamento. Houve relatos de conflito, mas não se confirmou óbito no local. Refere-se ainda que o Visconde adoeceu com suspeitas de envenenamento, porém sobreviveu.”
Troquei um olhar pasmado com Miguel. Ele bateu levemente no papel:
Miguel: — Então o Visconde não morreu naquele momento.
Clara: — E a Amélia conseguiu fugir!
Continuei a ler, as mãos a tremer:
“Algumas testemunhas disseram ter visto a jovem grávida a caminho da aldeia. O Visconde ofereceu recompensa por informações, mas nada se comprovou. Rumores indicam que mantinha contacto com um pintor chamado Vasco da Cunha, igualmente desaparecido.”
Deixei escapar um suspiro longo, sentindo um arrepio percorrer-me a espinha enquanto absorvia o peso daquela revelação. As palavras do registo antigo dançavam diante dos meus olhos, revelando um passado que parecia vibrar de vida, apesar dos séculos que nos separavam.
— Então ela escapou, mas… para onde?
— Provavelmente para bem longe da família — concluiu Miguel. — E Vasco sumiu também. Isto confirma que houve uma grande comoção, mas não esclarece o resto da história.
Fechei os olhos, o coração batendo descompassado no peito. Era como se pudesse sentir a determinação de Amélia a pulsar através do tempo — um eco do meu próprio desejo de me libertar das correntes que me prendiam. De repente, não era apenas curiosidade ou fascínio académico que me movia; era algo mais profundo, mais visceral — um reconhecimento de mim mesma naquela mulher que vivera há séculos, mas cuja coragem transcendia o tempo.
— Sinto que, de alguma forma, a história de Amélia é também a minha história — confessei, a voz embargada por uma emoção que não conseguia nomear. — Ela lutou tanto pela liberdade… E eu, por tanto tempo, vivi presa num casamento que me sufocava, sem coragem de largar tudo.
Uma página adiante, outra anotação dizia:
“Dois meses depois, chegou à paróquia a notícia de que Vasco da Cunha e uma jovem mulher poderiam ter cruzado a fronteira para Espanha. Alguns afirmam que ela teria dado à luz uma menina. Não há registos oficiais, pois não se apresentou qualquer certidão de casamento nem de batismo locais.”
Fechei os olhos, as emoções a virarem turbilhão dentro de mim. Amélia e Vasco… uma filha. Se isso fosse verdade, aquela criança podia muito bem ser a minha ancestral. Engoli em seco ao sentir uma onda de ternura e pesar por Amélia, que arriscara tudo para salvar a si mesma e ao bebé.
Miguel (baixinho): — Parabéns, Clara. Acho que acabaste de descobrir as origens reais da tua família.
Fiquei alguns segundos em silêncio, tentando assimilar tudo. Havia ainda mais a investigar, mas, pelo menos, uma questão estava respondida: Amélia não ficara presa à crueldade do Visconde. Tivera forças para fugir, tal como a última frase invisível do diário sugerira.

XX – À Beira da Estrada
Amélia, já com as pernas pesadas de tanto correr, chegou a uma encruzilhada perto da aldeia. Não via sinal de Vasco. O dia avançava, e tinha medo de ser apanhada a qualquer momento. Precisava de um plano, de ajuda. Foi então que notou uma carroça parada. Sentado no banco, um homem de chapéu castanho observava-a com curiosidade.
Homem (desconfiado): — Precisa de alguma coisa, senhora?
Amélia (ofegante): — Eu… eu preciso chegar a… a Espanha. Não posso explicar tudo agora. Pago o que for preciso.
Homem: — Espanha? A fronteira não é longe, mas por que…?
Ela tentou compor-se. O homem não parecia hostil, mas estava reticente. Amélia forçou um tom firme:
Amélia: — Por favor. A minha vida e a do meu filho dependem disso.
O homem coçou a barba, olhando-a com alguma pena.
— Está grávida… e sozinha?
Ela assentiu, olhos marejados.
— Pago-lhe. Tenho algum dinheiro… e algumas joias pequenas.
Com um suspiro, o homem fez-lhe sinal para subir para a carroça.
— Suba. Não sou de ferro. Mas não garanto levá-la direto à fronteira. Tenho assuntos a tratar em Caminha. Depois, se quiser continuar até Espanha, arranjará outra boleia.
Amélia agradeceu com a voz embargada e subiu. Enquanto a carroça começava a chocalhar pela estrada, ela manteve a cabeça baixa, rezando para não ser seguida pelos esbirros do Visconde. A cada sacudida, sentia a criança no ventre e murmurava: “Aguenta firme, meu amor.”

XXI – Revelando a Linhagem
De volta a casa, mostrei a Miguel algumas anotações antigas da minha família, coisas que a minha tia-avó guardava, mas que eu nunca analisara a fundo. Por exemplo, a certidão de nascimento de uma tal “Rosa Maria”, datada de 1890, em Madrid, filha de “Mãe incógnita” e “Pai incógnito”.
Essa certidão, traduzida do espanhol, tinha curiosamente, ao lado, um bilhete manuscrito:
“Rosa foi trazida para Portugal ainda bebé por uma senhora que a acolheu. Não se sabe o paradeiro dos pais biológicos.”
O coração disparou-me. Seria esta Rosa a filha de Amélia? Alguns meses depois, noutro documento, aparecia que Rosa fora adotada por uma prima distante dos Monte Real, que, por compaixão (ou para abafar escândalos), teria assumido a criação da menina.
— Isto é praticamente a confirmação — falei, com um nó na garganta. — A minha tia-avó sempre mencionou uma Rosa na árvore genealógica, mas sem explicar bem a origem.
— Então, é plausível que Rosa fosse a bebé de Amélia e Vasco, certo? — Miguel sugeriu, correndo os olhos pelos papéis.
Tive de me sentar. Era uma enxurrada de revelações.
— Isso significa que Amélia e Vasco conseguiram atravessar a fronteira, ela deu à luz em Espanha e, por alguma razão, deram a criança para adoção (ou foram obrigados a fazê-lo).
— Talvez porque estivessem em condições precárias — Miguel completou, pensativo. — Perseguidos ou sem meios para cuidar da bebé.
Parecia cruel, mas, ao mesmo tempo, corajoso: Amélia fizera de tudo para salvar a filha, mesmo que isso implicasse afastar-se dela. A linha do tempo começava a fazer sentido:
- Amélia foge do Visconde.
- Passa pela fronteira com Vasco (ou sozinha, para depois ser encontrada por ele).
- Em Madrid, nasce Rosa.
- Por circunstâncias incertas, Rosa acaba em Portugal, adotada por familiares distantes, mantendo um laço de sangue com os Monte Real.
- Gerações depois, a herança dessa casa chega às mãos da minha tia-avó e, por fim, a mim.
Suspirei, tocando de leve a capa do diário.
— Sinto que, de alguma forma, a história de Amélia é também a minha história. Ela lutou tanto pela liberdade… E eu, por tanto tempo, vivi presa num casamento que me sufocava, sem coragem de largar tudo.
Miguel sentou-se ao meu lado, o olhar terno.
— Mas agora estás a reconquistar a tua história, Clara. E a coragem dela ecoa na tua.
Ele tinha razão. Pela primeira vez, senti um orgulho profundo de ser descendente daquela mulher que ousara enfrentar a tirania e a hipocrisia do seu tempo.

XXII – Encontro com Vasco
A viagem de carroça durou mais de um dia. O homem que a ajudara parou numa estalagem em Caminha, onde Amélia se reabasteceu. Ali, descobriu que um jovem pintor estivera pela vila, perguntando desesperadamente por uma mulher grávida. O coração de Amélia deu um salto. Precisava encontrá-lo.
Na manhã seguinte, conseguiu mais uma boleia, agora numa carroça de um comerciante que atravessaria a fronteira para vender tecidos. E foi num posto de controlo já em terras espanholas que, por milagre ou coincidência, avistou alguém de chapéu de abas largas, sentado num canto, com ar de desalento.
Amélia (num grito abafado): — Vasco!
Ele ergueu os olhos, incrédulo, e correu na direção dela. Em poucos segundos, estavam abraçados, chorando.
— Perdoa-me — ele repetia, soluçando. — Fui ameaçado, perseguido, pensei que te tinha perdido… Tive de fugir. Tentei voltar, mas não consegui.
O comerciante, constrangido, afastou-se. Amélia contou-lhe tudo: o casamento forçado, a tentativa de fuga, o envenenamento que quase acontecera, a corrida pelos bosques. Vasco apertou-a contra o peito.
— Graças a Deus que estás bem, meu amor. — Ele acariciou-lhe o ventre, sentindo os movimentos da bebé. — Agora temos de seguir viagem. Deixaremos tudo para trás.
— Deixarei a minha família, o meu nome, tudo…, mas serei livre, contigo. — Amélia piscou, emocionada.
Combinados com o comerciante, avançaram mais algumas milhas estrada adentro, rumo a Madrid, onde Vasco dizia ter uns conhecidos que lhes poderiam dar abrigo. Assim terminava a vida aristocrática de Amélia Monte Real e começava a história de uma mulher que, apesar das adversidades, escolhera a esperança e o amor.
Algumas semanas depois, numa modesta cabana nas montanhas espanholas, Amélia sentia as primeiras dores do parto. Vasco segurava-lhe a mão, o rosto marcado pelo medo e pela esperança — uma dualidade que parecia definir toda a jornada deles até ali.
Com cada contração, Amélia revivia toda a sua história: os anos de falsa identidade, a descoberta da verdade sobre seus pais, a fuga desesperada de uma vida que nunca lhe pertencera. Cada dor parecia purificá-la, libertá-la um pouco mais dos fantasmas que a perseguiam. E quando finalmente ouviu o primeiro choro da filha — forte, determinado, cheio de vida — foi como se o mundo inteiro tivesse mudado de eixo.
Vasco trouxe-lhe o pequeno embrulho tremulante, e Amélia contemplou, maravilhada, o pequeno rosto que reunia traços dela e do amado. Uma menina. Uma menina com os olhos da sua mãe e a força do seu pai — uma menina que era, em todos os sentidos, uma parte de si e um reflexo daqueles que a tinham amado além da própria vida.
— Vou proteger-te — sussurrou ela, as lágrimas a escorrer-lhe pelo rosto enquanto embalava a filha nos braços. — Vou amar-te… e vou garantir que conheces a verdade. Toda a verdade — sobre quem és, de onde vens… e o quão profundamente foste desejada e amada.
E assim, longe da opressão da sociedade que tentara defini-la e controlá-la, Amélia finalmente encontrou a paz que sempre buscara — não nas riquezas ou títulos, mas no amor incondicional da família que construíra com suas próprias mãos.

XXIII – Último Nó
Algumas semanas depois, eu e Miguel acumulávamos pilhas de anotações e referências. Tínhamos, por fim, um quadro relativamente completo de como se desenrolara a história de Amélia e Vasco. Num dia de sol, decidimos organizar tudo numa grande mesa improvisada na sala, a mesma onde estudáramos o diário.
Espalhámos as folhas, as certidões, o caderno de Vasco e o diário de Amélia. Como dois detetives, apontávamos cada data e cada local, vendo as peças encaixarem.
— E agora? — perguntei, pousando a mão sobre as páginas. — O que fazemos com toda esta informação?
Miguel passou os dedos pelos documentos, pensativo.
— Podes divulgar à família, transformar em livro, ou…
Sorri.
— Ou, simplesmente, honrar esse passado. Podemos restaurar esta casa, abrir as portas como um pequeno museu, contando a história de Amélia e do pintor. Quem sabe inspirar outras pessoas a conhecer a própria genealogia e a valorizar a liberdade?
Ele pareceu concordar, mas percebi algo mais no seu olhar. Uma hesitação.
— E tu, Clara? Tens pensado no que farás daqui para a frente, de forma pessoal?
Corei ligeiramente.
— Com isto tudo, percebi que não posso ter medo de recomeçar. Preciso lançar-me na vida, como Amélia fez. — Respirei fundo. — E se puder contar contigo, seria bom. Mas… também entendo se preferires ir embora, agora que resolveste o puzzle.
Aproximei-me dele, sentindo as bochechas arderem. Miguel sorriu, um sorriso morno que aquecia a alma.
— Acho que já decidi: prefiro ficar. Se me aceitares.
Sentimos, então, que o novelo das histórias — a de Amélia, a de Vasco, a minha e a de Miguel — se unia num fio único, cheio de nós, mas coeso. Passado e presente fundiram-se naquele instante. E, no fundo do meu coração, agradeci a Amélia pela herança mais valiosa que me deixara: a coragem para libertar-me das correntes, quaisquer que fossem.

EPÍLOGO – Um Museu, Uma Revelação, Um Eco Incerto
A placa recém-instalada na entrada da casa dizia: “Espólio Monte Real – Exposição Permanente: ‘A Tinta do Amante Silencioso’”. Era um título poético, mas condizente com tudo o que eu e Miguel descobrimos – e que agora decidimos partilhar com o mundo. Não esperávamos multidões, mas sim visitantes curiosos o bastante para apreciar a magia de uma história familiar resgatada do esquecimento.
E, na verdade, não era só uma história de família – era sobre liberdade e coragem. Sobre como, no século XIX, uma mulher decidira não aceitar as imposições sufocantes da sociedade e fugira para viver um amor proibido, mesmo que isso lhe custasse o nome, o estatuto e a segurança. Era, também, um espelho para a minha própria vida, mostrando-me que sempre há tempo para recomeçar.
O Pequeno Museu
Nos últimos meses, transformei a sala de estar e algumas cómodas adjacentes em espaços expositivos. A madeira fora polida e tratada para realçar as vigas antigas. Adicionei painéis informativos com reproduções de documentos (as certidões e assentos que confirmavam o desaparecimento de Amélia, o caderno de Vasco da Cunha, a receita da tinta). Num canto especial, instalei uma vitrine onde exibia o “diário original” de Amélia, acompanhado de uma pequena lâmpada UV.
Os visitantes podiam, assim, ver com os próprios olhos como as palavras secretas surgiam em luz arroxeada, tal qual um feitiço sussurrado do passado. Algumas pessoas vinham por curiosidade histórica; outras, pelo romance; outras, ainda, porque a história da tinta invisível lhes parecia coisa de filme. Eu, por outro lado, estava orgulhosa de cada pequena peça deste puzzle, recolocada no seu lugar.
O Bilhete Misterioso
Foi ao fim de um dia exausto, em que recebemos um grupo de estudantes universitários, que me sentei na biblioteca da casa – agora também transformada em parte do circuito museológico – para relaxar. Miguel tinha saído para resolver burocracias com a câmara municipal. O silêncio era um bálsamo depois de tantas perguntas e flashes de fotografia.
Só que, na penumbra, algo prendeu o meu olhar: um pequeno envelope preso numa moldura, que até então me passara despercebido. Certamente, fora deixado ali por engano quando organizámos o acervo. Levantei-me e retirei a moldura da parede com cuidado. O envelope estava colado ao fundo, com um fio de linho.
Clara pensou: “O que será isto?”
Abri o envelope, encontrando um curto bilhete manuscrito – não da época de Amélia, mas que parecia ter décadas. Na margem inferior, lia-se: “Para que nunca esqueças as tuas raízes, mesmo que a vida nos separe.”
A caligrafia era desconhecida, mas havia um traço de familiaridade no jeito curvo das letras, talvez semelhante a um texto que eu vira noutro canto do acervo. E lá, no meio do bilhete, apenas duas frases:
“Não sabemos se Amélia e Vasco encontraram a felicidade, se regressaram a Portugal ou se morreram noutro país. O mistério sobrevive aos séculos. Mas a sua tinta ainda brilha… e, enquanto houver amor, haverá quem escreva secretamente a própria liberdade.”
Senti um arrepio. Podia ser de alguma herdeira tardia, quem sabe a mesma parente que adotara Rosa (filha de Amélia). Ou talvez alguém que, décadas mais tarde, tentara reconstruir essa história antes de mim. O certo é que aquele bilhete reforçava a ambiguidade do destino final de Amélia e Vasco: teriam eles realmente vivido felizes, ou ter-se-iam separado a meio do caminho? Ninguém sabia ao certo. O registo oficial parava em Madrid. A história podia prolongar-se numa encruzilhada de hipóteses.
A Revelação na Última Página
Sacudi a curiosidade e fui até à vitrine do diário. Retirei-o cuidadosamente, aproveitando que não havia mais ninguém no recinto, e levei-o para a mesa. Acendi a pequena lâmpada UV (minha fiel companheira de investigações) e passei-a vagarosamente por cada página.
Com o coração aos saltos, quase a desistir de encontrar algo novo, percebi um contorno de tinta que nunca vira antes. Estava no verso da contracapa, junto à lombada, como se fossem… iniciais? Aproximei a luz e, com esforço, distingui:
“A e V, livres em cada palavra.”
Engoli em seco. Era como se Amélia e Vasco tivessem deixado aquela pequena marca, um símbolo do amor deles, para quem tivesse a paciência e a tecnologia necessária para encontrá-la. Fora, sem dúvida, um gesto romântico, quase impercetível.
Senti a garganta apertar com uma emoção intensa. Deixei-me ficar ali, na penumbra, absorvendo aquela declaração do passado. Eles sentiam-se livres cada vez que escreviam e pintavam, rompendo as correntes sociais. E ali, tantos anos depois, eu redescobria aquele sonho.
Entre os documentos que encontramos, havia uma carta extraordinária — cuidadosamente preservada e escondida no interior da encadernação do diário de Amélia. Estava escrita com a mesma tinta especial, apenas visível sob nossa luz UV, mas o que tornava o documento verdadeiramente especial era seu conteúdo: palavras de Margarida, a mãe biológica de Amélia, escritas antes de seu falecimento no parto.
A carta expressava um amor tão profundo, tão incondicional, que me fez chorar na primeira leitura. Falava de esperança, de sacrifício, de um legado de força que Margarida desejava passar para a filha que nunca conheceria. E terminava com palavras que pareciam transcender o tempo, falando não apenas com Amélia, mas com todas as mulheres que, como ela, lutaram pelo direito de definir seu próprio destino:
“Sê feliz. Sê livre. E acima de tudo — sê tu mesma, sem medo e sem reservas. Porque é isso, mais do que qualquer nome ou título, que te torna verdadeiramente excecional.”
Quando terminei de ler aquelas palavras para Miguel, vi que ele também estava emocionado. Era como se tivéssemos testemunhado não apenas o fechamento de um círculo familiar, mas uma reconciliação mais profunda — um momento em que o passado e o presente se encontravam, trazendo não apenas respostas, mas também uma espécie de absolvição para todos os envolvidos.
A luz do entardecer entrou pela janela, tingindo tudo de dourado. Sorri ao pensar em Miguel — no quanto também nos aproximámos, lado a lado, a desfiar estes segredos. Era como se, através da jornada daquela mulher corajosa, eu também tivesse encontrado uma parte vital de mim mesma — uma força e clareza de propósito que sempre me havia escapado.
— Não importa se cheguei a ser feliz para sempre — imaginei Amélia a dizer. — O que importa é que ousei escolher a minha própria estrada.
Estremeci, e uma lágrima furtiva correu-me pela face. Aquela mensagem, mais forte do que qualquer resposta definitiva, encerrava um tipo de verdade que me bastava. Porque, sim, a tinta invisível de Amélia e Vasco ainda brilhava no nosso presente — prova de que a liberdade, o amor e a coragem podem atravessar gerações e tornar-se história viva.
E agora, era a nossa vez de escrever o próximo capítulo. Eu e Miguel, unidos não apenas pela curiosidade histórica ou pela coincidência do destino, mas por algo mais profundo — um reconhecimento mútuo de almas que, como Amélia e Vasco, estavam dispostas a desafiar convenções em nome de algo verdadeiro.
Porque agora nós sabíamos, com a certeza nascida de gerações de sacrifício e redenção, que enquanto tivéssemos um ao outro… poderíamos enfrentar qualquer coisa. O futuro, com todos os seus mistérios e promessas, era uma página em branco pronta para as palavras que escolhêssemos escrever — juntos.
Um Futuro em Aberto
A luz do entardecer entrou pela janela, tingindo tudo de dourado. Sorri ao pensar em Miguel – no quanto também nos aproximámos, lado a lado, a desfiar estes segredos. Faltava-lhe pouco para regressar. Poderíamos então contar um ao outro as descobertas do dia. Talvez estivéssemos a começar outra história, não menos importante, e, quem sabe, repleta de páginas ainda por escrever.
Ao fundo, num pequeno cavalete, estava um dos retratos que Vasco pintara de Amélia (restaurado há pouco tempo). Os olhos dela pareciam observar-me, como se soubesse que eu estava a ler as suas últimas confissões.
E, no silêncio, foi como se a voz de Amélia murmurasse:
“Não importa se cheguei a ser feliz para sempre. O que importa é que ousei escolher a minha própria estrada.”
Estremeci, e uma lágrima furtiva correu-me pela face. Aquela mensagem, mais forte do que qualquer resposta definitiva, encerrava um tipo de verdade que me bastava. Porque, sim, a tinta invisível de Amélia e Vasco ainda brilhava no nosso presente – prova de que a liberdade, o amor e os segredos podem atravessar gerações e tornar-se história viva.
Fevereiro 2025
© Júlio Miranda

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