Avesso da Alma

Capítulo 1 – Fachada
O estetoscópio balançava suavemente sobre a bata branca imaculada enquanto a Dra. Laura Silva percorria com passos decididos o corredor movimentado do Hospital de Santa Maria. À sua passagem, surgiam sorrisos ensaiados, acenos cordiais e cumprimentos respeitosos dos colegas e funcionários.
– Doutora, o senhor Ferreira está estável – informou a Enfermeira Mariana, numa voz serena e profissional que não traía o cansaço de um turno longo.
– Obrigada, Mariana – Laura respondeu, tentando imprimir uma nota de doçura no seu tom habitualmente eficiente. Fez um esforço consciente para manter a máscara de calma e controle que lhe assentava tão bem.
Por fora, ela era o retrato da perfeição e competência médica: bata sempre impecável, cabelo escuro apanhado num rabo-de-cavalo apertado, um sorriso polido mas distante que escondia as tempestades interiores. Ninguém adivinharia, a olhar para esta mulher de 40 anos no auge da carreira, as batalhas que travava consigo mesma.
Mas por dentro, era um turbilhão de ansiedade e inseguranças que a corroíam. A comichão persistente nos pulsos, sob a pele alva, era o sintoma físico do desejo incessante de recorrer às pastilhas. Aqueles comprimidos pequenos e aparentemente inócuos que a mantinham funcional, mas que se tinham tornado os seus piores inimigos. A cada dia que passava, a dependência deles crescia, uma teia insidiosa que a enredava cada vez mais.
No caminho para casa, as mãos tremiam no volante enquanto atravessava as ruas congestionadas de Lisboa. Inspirou fundo para controlar a ansiedade, mas o aperto no peito era uma garra constante. Chegada ao prédio familiar, correu escadas acima, evitando o olhar dos vizinhos. Não podia arriscar que vissem as rachas na fachada cuidadosamente erigida.
Ao entrar em casa, o contraste era gritante. O apartamento cheirava a uma mistura desagradável de lixívia, café frio e roupa por lavar. Na cozinha, a pilha de louça suja acumulava-se, um testemunho silencioso da negligência doméstica. Na sala, brinquedos espalhados e papéis da escola formavam um trilho caótico.
– Mãe, esqueci-me do lanche! – gritou Hugo, o filho de sete anos, já na porta, a mochila pendurada precariamente de um ombro. Laura acenou-lhe distraidamente, sem conseguir reunir a energia para resolver a situação.
Pedro, o marido, deixara a chávena de café meio bebida sobre uma revista médica, manchando os gráficos coloridos. Tantos pequenos sinais de desordem e desleixo que a incomodavam profundamente, quase tanto quanto o vazio sufocante no seu próprio peito.
Trancou-se na casa de banho e abriu o armário de medicamentos com mãos trémulas. Entre frascos de aspirinas e vitaminas, encontrava-se a sua salvação e maldição: uma caixa de alprazolam, escondida atrás de uma embalagem de pensos higiénicos. Engoliu dois comprimidos rapidamente, sem hesitar, desejando que o oblívio químico a envolvesse.
“Só assim aguento mais um dia”, pensou Laura, encostando a testa à superfície fria do espelho. O reflexo encarou-a de volta – uma mulher de olhos ocos e lábios crispados, muito diferente da médica confiante e imperturbável que todos conheciam. Mas essa era a imagem que ninguém podia ver. A máscara tinha de permanecer intacta a todo o custo.
Capítulo 2 – Chegada da Clara
Era um dia abafado de agosto quando a nova inquilina chegou ao prédio. O ar estava pesado e imóvel, quase sólido de tão denso, e o asfalto derretia sob a intensidade inclemente do sol. As cigarras cantavam estridentemente nas árvores ressequidas do pequeno jardim em frente ao edifício, um coro ensurdecedor.
Laura chegou a casa exausta depois de mais um turno longo no hospital, a bata encharcada de suor colada às costas. Tudo o que queria era uma bebida gelada e alguns momentos de sossego antes de enfrentar as tarefas domésticas que a aguardavam.
Mas ao sair do elevador, percebeu de imediato que algo estava diferente. O corredor habitualmente tranquilo do seu andar fervilhava de atividade. Caixas de cartão empilhadas, malas, sacos e peças de mobília por todos os lados. E encostadas à parede, chamando a atenção como um farol, grandes telas coloridas.
Laura aproximou-se, curiosa apesar do cansaço. As pinturas eram abstratas, explosões vibrantes de azuis-petróleo, verdes-esmeralda e roxos-beringela. Figuras femininas emergiam das manchas de cor, etéreas e espectrais, os contornos deliberadamente inacabados. Havia uma energia crua e visceral naquelas imagens que a perturbou e fascinou.
“Deve ser obra da nova vizinha”, pensou Laura. “Uma artista, ao que parece”.
Como se adivinhasse os seus pensamentos, uma porta abriu-se mesmo nesse instante e de lá saiu uma mulher que parecia ter materializado diretamente de uma das telas. Era alta e magra, com uma cabeleira encaracolada cor de cobre que lhe chegava à cintura. Vestia umas calças de ganga largas cobertas de respingos de tinta e uma t-shirt branca estirada e manchada. Mas o que mais impressionou Laura foram os seus olhos – de um azul elétrico desconcertante, pareciam quase demasiado grandes para o seu rosto anguloso.
– Olá! Desculpe a confusão – a mulher sorriu, estendendo a mão. – Sou a Clara, acabei de me mudar para aqui.
– Laura. Muito prazer – respondeu ela, apertando a mão da nova vizinha. A pele dela estava fria apesar do calor, e havia um ligeiro tremor nos seus dedos. Ou seria impressão sua?
– Peço imensa desculpa pelo barulho e pela obstrução do corredor. O meu namorado e uns amigos ajudaram-me com a mudança, mas agora desenrascamo-nos os dois – explicou Clara, passando a mão pelos caracóis desalinhados.
– Não tem problema, é normal nestes dias – assegurou Laura, com um sorriso educado. – Bom, tenho de ir andando. Mais uma vez, bem-vinda ao prédio!
– Obrigada! Espero que possamos conversar melhor em breve – disse Clara, com uma nota de esperança na voz que Laura não soube bem interpretar.
Já no seguro do seu apartamento, Laura encostou-se à porta fechada e suspirou. Havia algo naquela mulher que a intrigava e inquietava, uma espécie de vulnerabilidade escondida sob a aparência descontraída. “Conversar melhor”? Duvidava que alguma vez tivesse muito em comum com uma artista daquelas, por mais simpática que parecesse.
Com um esforço de vontade, afastou os pensamentos sobre a nova vizinha e concentrou-se nas tarefas urgentes à sua frente: preparar o jantar, verificar os trabalhos de casa do Hugo, pôr uma máquina de roupa a lavar. E claro, a necessidade cada vez mais premente de um comprimido para acalmar a ansiedade crescente.
Mas nessa noite, enquanto tentava adormecer com o ressonar suave de Pedro a seu lado, eram os olhos penetrantes de Clara que via atrás das pálpebras fechadas. Um azul elétrico que parecia perscrutar os recantos mais escondidos da sua alma.
Capítulo 3 – Gatilhos
Nos dias que se seguiram à chegada de Clara ao prédio, Laura mergulhou de cabeça no trabalho, usando o turbilhão de atividade no hospital como distração bem-vinda dos seus problemas pessoais. Focou-se obstinadamente nas necessidades dos pacientes, verificando sinais vitais, atualizando processos clínicos e prestando palavras de conforto sempre que podia.
Mas por baixo da fachada de competência clínica, a ansiedade fervilhava, uma corrente elétrica sob a pele. A meio de uma consulta, a mão tremia ao segurar a caneta. Ao examinar uma radiografia, as letras e números dançavam à frente dos olhos. O desejo dos comprimidos era uma comichão persistente no fundo da mente, desgastando a sua concentração.
– Está tudo bem, doutora? – perguntou a Enfermeira Mariana um dia, os olhos escuros cheios de preocupação ao entregar-lhe um processo. – Parece um pouco pálida.
– Não é nada, apenas cansaço – respondeu Laura rapidamente, esboçando o sorriso tranquilizador que tinha aperfeiçoado ao longo dos anos. – Obrigada pela preocupação, Mariana.
Mas a verdade é que estava tudo menos bem. Cada vez mais, Laura precisava de duas, três doses diárias de alprazolam só para conseguir funcionar. Os comprimidos deixaram de ser uma muleta ocasional para se tornarem uma necessidade absoluta, tão vital como o ar que respirava. E isso aterrorizava-a.
Em casa, a tensão atingia o ponto de rutura. Pedro andava cada vez mais distante e irritável, refugiando-se no trabalho e em saídas com os amigos. Raramente conversavam, e quando o faziam era para discutir por causa de faturas por pagar ou tarefas domésticas negligenciadas.
Hugo, sensível como era, absorvia a atmosfera pesada como uma esponja. Tinha pesadelos frequentes e molhava a cama, chorando pelo colo da mãe a meio da noite. Laura tentava consolá-lo, mas a sua paciência e energia estavam no limite.
Foi nesse estado de exaustão e desespero que Laura se viu, numa tarde de sábado, a bater à porta de Clara. Mal se reconhecia, ali de pé no corredor como uma mendiga, a caixa de alprazolam vazia a pesar como chumbo na mão trémula. Mas a necessidade era mais forte do que o orgulho.
– Desculpa incomodar, Clara – começou ela quando a vizinha abriu a porta, vestida com as suas roupas largas habituais. – Por acaso não terias uns calmantes para me emprestar? Acabaram-se-me os meus e a farmácia já fechou.
Clara estudou-a por um longo momento, os olhos azuis elétricos a perscrutarem-lhe o rosto pálido e os lábios crispados. Pareceu chegar a uma decisão.
– Entra – disse simplesmente, abrindo mais a porta.
O apartamento de Clara era um reflexo da sua persona artística – mobília eclética, cores ousadas nas paredes, telas e esboços por todo o lado. Havia um forte cheiro a tinta e terebintina, e uma janela aberta deixava entrar uma brisa suave.
Clara dirigiu-se a um armário e tirou uma caixa de um medicamento que Laura não reconheceu. Entregou-lha sem uma palavra.
– Obrigada. Eu… – Laura engoliu em seco, subitamente envergonhada. Mas Clara pousou-lhe uma mão reconfortante no ombro.
– Não precisas de explicar nada. Todos temos os nossos demónios – disse ela, com uma voz carregada de compreensão. E talvez… de experiência pessoal?
Algo estalou dentro de Laura nesse momento. As lágrimas que mantivera represadas tanto tempo vieram à superfície como uma onda, irreprimíveis. E ali, no meio dos quadros fantasmagóricos de Clara, encontrou pela primeira vez em anos um ombro onde chorar.
Capítulo 4 – Queda
A festa de aniversário de Hugo foi um pesadelo logístico e emocional para Laura. Com Pedro ausente numa viagem de trabalho ao Porto, coube-lhe a ela todos os preparativos e gestão do evento. Comprar e embrulhar as prendas, encomendar o bolo, encher balões, preparar sandes e sumos. E claro, supervisionar um bando de crianças excitadas e barulhentas.
Decidira alugar uma piscina insuflável para animar a festa, apesar dos custos e trabalhos extra. Queria que Hugo tivesse um dia especial e memorável, uma pausa da atmosfera pesada que se instalara em casa nos últimos meses. E se isso implicasse esticar o orçamento e as suas energias até ao limite, que assim fosse.
No dia, o calor era opressivo, o ar espesso e pegajoso. As cigarras cantavam estridentemente nas árvores, abafando o som das risadas e gritos das crianças. Laura corria de um lado para o outro, a servir bebidas, a limpar copos entornados, a mediar disputas infantis. Sentia-se exausta e à beira de um ataque de pânico, a ansiedade a borbulhar mesmo sob a dose extra de alprazolam que tomara de manhã.
– Mãe, mãe! Olha o que eu consigo fazer! – gritava Hugo, saltando para a piscina com um chapinhar entusiástico.
Laura acenava e sorria, um sorriso tenso e frágil que ameaçava quebrar a qualquer instante. “Só mais umas horas”, pensava ela. “Só tenho de aguentar mais umas horas e isto acaba”. Mas o cansaço era esmagador, um peso viscoso nos membros e na mente.
Foi num desses momentos de distração, a servir mais uma rodada de sumo, que aconteceu. Um grito agudo cortou o ar, seguido de um silêncio súbito e terrível. Laura virou-se instintivamente para a piscina e o mundo pareceu parar.
Hugo flutuava de bruços na água, imóvel, os braços e pernas esticados em ângulos estranhos. A água à sua volta tingia-se de vermelho, um remoinho sinistro. As outras crianças olhavam paralisadas, como se não conseguissem processar a cena de horror à sua frente.
Laura não se lembra de correr, mas num instante estava na piscina, agarrando o corpo mole do filho e puxando-o para a borda. Os seus dedos tremiam tanto que mal conseguia sentir a pulsação no pescoço frágil. Com movimentos automáticos, começou as manobras de reanimação, comprimindo o peito pequeno e soprando ar para os pulmões cheios de água.
– Por favor, por favor… – sussurrava ela, uma prece e um mantra. – Volta para mim, meu amor. Não me deixes.
Os minutos seguintes foram um borrão de sirenes, paramédicos e tubos de oxigénio. Laura viu-se como que de fora do corpo, a segurar a mão do filho na ambulância, a responder a perguntas de médicos e enfermeiros em piloto automático. Era como se tivesse sido anestesiada, os sentidos embotados por uma mortalha de choque.
Mais tarde, muito mais tarde, sentada numa cadeira desconfortável ao lado da cama de Hugo no hospital, a realidade começou a infiltrar-se pelas rachas da dormência. O cheiro familiar a antisséptico e desinfetante, os sons ritmados dos aparelhos, o rosto pálido e vulnerável do filho sob a máscara de oxigénio. E uma culpa monstruosa, esmagadora, a consumi-la por dentro como ácido.
“É tudo culpa minha”, pensava Laura obsessivamente. “Eu não estava lá. Não o protegi. Falhei como mãe”. As lágrimas caíam grossas e quentes, escaldando-lhe a pele. “Por causa dos malditos comprimidos”. A boca tinha um gosto amargo, de vergonha e autorrecriminação.
Algures na noite, uma figura esguia deslizou para dentro do quarto, com o silêncio de um fantasma. Clara puxou uma cadeira e sentou-se ao lado de Laura, sem uma palavra. Segurou-lhe a mão com firmeza, ancorando-a, e ficou simplesmente ali, uma presença sólida e reconfortante nas horas mais escuras.
E Laura agarrou-se a essa mão como a uma tábua de salvação no meio do naufrágio da sua vida. Porque sabia, com uma clareza súbita e cortante, que tinha de mudar. Pelo Hugo. Por ela própria. Antes que fosse tarde demais.
Capítulo 5 – Despertar
Os dias seguintes passaram num borrão de exaustão e ansiedade para Laura. Recusou-se a sair do lado da cama de Hugo no hospital, monitorizando obsessivamente cada melhoria e recaída no seu estado. Falava com os médicos incessantemente, colocando o seu conhecimento médico ao serviço, determinada a garantir que o filho recebesse os melhores cuidados possíveis.
Pedro foi apanhado no primeiro voo de volta a Lisboa assim que recebeu a notícia. Atravessou as portas do quarto de Hugo como um furacão, o rosto marcado pela preocupação e exaustão, exigindo respostas que Laura não tinha para dar.
– Como é que isto pôde acontecer? Onde é que tu estavas? – A acusação feroz na sua voz era como uma bofetada.
Laura encolheu-se, a culpa e a vergonha engolfando-a como ondas gigantes. As palavras de explicação e desculpa morreram-lhe na garganta, afogadas por soluços secos. Porque no fundo sabia que Pedro tinha razão. Tinha falhado no seu dever mais básico como mãe – proteger o seu filho.
Os olhos de Pedro suavizaram-se um pouco perante a angústia evidente de Laura. Puxou-a desajeitadamente para um abraço, os braços rígidos com uma mistura de raiva, alívio e medo. Ficaram assim longos minutos, unidos na sua vigília silenciosa sobre o filho adormecido.
Quando Hugo finalmente acordou, dois dias depois, foi como se uma represa se tivesse rompido dentro de Laura. As lágrimas que tinha contido durante a provação jorraram livres, regando o rosto pálido e confuso do filho com beijos trémulos. A alegria de o ver consciente misturava-se com a culpa corrosiva de saber que tinha sido o seu comportamento negligente a colocá-lo em perigo.
– Perdoa-me, meu amor – sussurrava ela entre soluços. – A mãe nunca mais te vai falhar assim. Vou tratar de mim, para poder cuidar de ti.
E Laura sabia, com uma clareza cristalina, que tinha de honrar essa promessa. Pela sua família, por si própria, pela memória de Isadora – tinha de enfrentar os seus demónios de frente e vencê-los.
O primeiro passo foi o mais difícil. Com as mãos trémulas e a boca seca, Laura procurou a Dra. Sousa, a psiquiatra de serviço no hospital. Na segurança do seu consultório acolhedor, as palavras tropeçaram e derramaram-se, uma torrente de medos, culpas e vergonhas reprimidos há tanto tempo.
Falou da ansiedade paralisante que a consumia, da dependência dos comprimidos que tinha saído do controlo, da exaustão esmagadora de tentar conciliar a carreira médica com as exigências da família. E, pela primeira vez em décadas, falou de Isadora – a irmã mais nova que tinha morrido afogada aos nove anos, numa tarde de verão, enquanto Laura, encarregada de tomar conta dela, se deixara distrair pelo novo livro.
– A culpa nunca me deixou – sussurrou Laura, torcendo as mãos. – Carreguei-a comigo todos os dias, como uma pedra no peito. E quando aconteceu com o Hugo… foi como reviver tudo de novo.
A Dra. Sousa ouviu-a com atenção e compaixão, sem uma palavra de julgamento. E ali, naquele espaço seguro, Laura sentiu algo mudar dentro dela – um primeiro afrouxar dos nós de culpa e vergonha que a tinham amarrado durante tanto tempo.
Nas semanas seguintes, entre sessões de terapia e reuniões de grupos de apoio, Laura trabalhou diligentemente na sua recuperação. Reaprendeu a lidar com a ansiedade usando estratégias de mindfulness, em vez de recorrer aos comprimidos. Reconectou-se com o marido e o filho, reconstruindo lentamente a confiança e a intimidade perdidas.
E ao longo de todo o processo, Clara foi uma presença constante e reconfortante. Aparecia no apartamento com refeições caseiras quando Laura estava demasiado cansada para cozinhar, levava Hugo ao parque para ela poder ter um momento de sossego, e oferecia uma orelha atenta e um ombro amigo nas horas mais difíceis.
– Todos temos os nossos fantasmas – disse Clara um dia, enquanto trabalhava numa nova pintura no seu estúdio improvisado. – O truque é transformá-los em arte, em vez de os deixar consumir-nos.
E, lentamente, dia após dia, era isso que Laura começava a fazer – a transformar a sua dor em crescimento, a sua culpa em perdão, as suas cicatrizes em força. Porque era isso, aprendeu, o verdadeiro significado de cura – não o apagar do passado, mas o abraçar de todas as partes de si mesma, luzes e sombras, e a coragem de seguir em frente mesmo assim.
Capítulo 6 – Renascer
O verão chegava ao fim quando Laura regressou ao prédio após mais uma sessão de terapia intensiva. Sentia-se exausta, mas estranhamente leve, como se um peso invisível tivesse sido gradualmente levantado dos seus ombros nas últimas semanas. O caminho para a recuperação tinha sido árduo e doloroso, forçando-a a confrontar verdades há muito enterradas e a reconstruir-se a partir dos pedaços – mas a cada dia que passava, sentia-se um pouco mais inteira, um pouco mais resiliente.
Com uma mão segurando um saco de compras e a outra no corrimão, Laura subiu lentamente as escadas até ao seu andar. Ao aproximar-se da porta, reparou numa movimentação invulgar no apartamento de Clara. A vizinha parecia estar a embalar as suas pinturas, empilhando-as cuidadosamente junto à porta como se preparasse uma mudança.
Laura parou, confusa e alarmada. Depois de tudo o que tinham partilhado nas últimas semanas – as longas conversas noite dentro, as lágrimas e os risos, os momentos de vulnerabilidade crua – a ideia de perder a amizade de Clara era como uma facada no peito. Sem pensar, aproximou-se e bateu suavemente na porta entreaberta.
– Clara? Está tudo bem? – A voz traiu-lhe a apreensão.
Clara virou-se, o rosto amadurecido iluminando-se com um sorriso ao ver Laura.
– Sim, está tudo ótimo. Desculpa não te ter contado antes, mas surgiu uma oportunidade incrível. Vou ter uma exposição a solo numa galeria no Porto no próximo mês. Estou a escolher as peças para levar.
Laura sentiu uma onda de alívio e alegria genuína pela amiga. Clara merecia todo o reconhecimento pela sua arte poderosa e transformadora. Mas não pôde evitar também uma pontada de tristeza egoísta com a perspetiva da partida iminente.
– Estou tão feliz por ti – disse com sinceridade, abraçando Clara. – Vais arrasar, tenho a certeza. Só… vou sentir muito a tua falta. Não sei se conseguiria ter chegado até aqui sem o teu apoio.
Clara apertou-a com força, a emoção palpável no gesto.
– Eu estarei sempre aqui para ti, Laura. Mesmo à distância. Mas tu tens uma força incrível dentro de ti. Sempre tiveste. Eu só te ajudei a reencontrá-la.
Ficaram assim em silêncio por um longo momento, unidas por um laço que transcendia tempo e espaço. Quando finalmente se separaram, o olhar de Laura recaiu sobre uma tela encostada à parede – a imagem perturbadora de uma mulher de costas a afundar-se num mar de tinta preta, os braços estendidos como se tentasse alcançar algo invisível.
Clara seguiu o olhar de Laura e sorriu enigmaticamente. – Essa pintura é especial – disse baixinho. – Foi a primeira que fiz depois de… enfim, depois de enfrentar os meus próprios demónios. Sabes, todos temos um “avesso da alma”, um lado sombrio que tentamos esconder do mundo e de nós mesmos. Mas é só quando o abraçamos, quando o trazemos à luz, que podemos realmente sarar.
E ali, naquele momento suspenso, ocorreu a Laura que era exatamente isso que Clara tinha feito por ela – tinha-a ajudado a aceitar e integrar as partes mais escuras de si mesma, a transformar a culpa e a vergonha paralisantes em combustível para o crescimento e auto–perdão. Tinha sido o espelho compassivo que lhe mostrara que era possível emergir mais forte e inteira do outro lado da dor.
Com um aperto na garganta, Laura abraçou Clara mais uma vez antes de sair. De volta ao seu apartamento, olhou em volta com olhos novos – para as fotografias de família nas paredes, o desenho infantil de Hugo colado no frigorífico, o casaco de Pedro pendurado junto à porta. Pequenas e preciosas peças da sua vida que tinha falhado em valorizar na neblina de ansiedade e autorrecriminação.
Mas já não mais. Com uma nova determinação, Laura começou a arrumar a desordem acumulada, a abrir as janelas para deixar entrar o ar fresco, a preparar um jantar saboroso para a família. Pequenos atos de cuidado e presença, a reafirmar o seu compromisso de viver uma vida mais autêntica e conectada.
Mais tarde, quando Hugo e Pedro chegaram a casa, foram recebidos pelo cheiro reconfortante da comida no forno e pela visão de uma Laura sorridente e de olhos brilhantes. Ao reunirem-se à volta da mesa, partilhando histórias do dia e gargalhadas há muito ausentes, era como se uma luz suave e curativa tivesse finalmente penetrado as fissuras de um lar há muito fragmentado.
E Laura sabia, com cada fibra do seu ser, que embora o caminho à frente ainda guardasse muitos desafios, estava finalmente no rumo certo. Porque tinha aprendido a lição mais importante de todas – que a verdadeira força não residia na perfeição inatingível, mas na coragem vulnerável de abraçar as nossas imperfeições e continuar a amar e a viver, apesar delas. Ou talvez, percebeu agora, por causa delas.
Fevereiro 2025
© Júlio Miranda
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